16 de novembro de 2025
Entre números e vidas: o peso da união infantil
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“Eu casei aos 14 anos porque fiquei grávida e achei que seria o certo. Hoje tenho 17, duas filhas e parei de estudar. Queria voltar, mas é difícil sem apoio. Hoje vejo com clareza que não tive as orientações que precisava quando era adolescente ainda”, conta A.N (iniciais colocadas a pedido), moradora da zona rural de São Luís.

Casei aos 14 anos porque fiquei grávida e achei que seria o certo

O casamento precoce geralmente significa o fim da infância. Crianças e adolescentes são forçados a assumir responsabilidades de adultos quando ainda não estão preparados. Em muitos casos, como o da personagem acima, isso resulta na interrupção dos estudos, limitando as oportunidades de trabalho e perpetuando ciclos de pobreza e desigualdade.

O que A.N relata se encaixa nas estatísticas. O casamento precoce está fortemente ligado à gravidez na adolescência, o que aumenta o risco de complicações durante o parto — uma das principais causas de morte entre adolescentes em países em desenvolvimento. Além disso, muitas enfrentam violência doméstica e falta de autonomia sobre o próprio corpo e suas decisões.

Levantamentos recentes mostram que o casamento infantil continua a afetar meninas em todo o mundo. Pesquisadores e profissionais destacam que, além das implicações legais, sociais e econômicas, a prática compromete saúde, educação e o desenvolvimento emocional das vítimas, evidenciando a urgência de políticas públicas eficazes para romper o ciclo de vulnerabilidade.

No estado do Maranhão, o fenômeno do casamento infantil — ou seja, uniões que envolvem crianças ou adolescentes menores de 18 anos — continua sendo um desafio social relevante. Embora a legislação brasileira tenha avançado, muitos indicadores apontam para que a prática persista, especialmente em regiões mais vulneráveis.

Levantamento da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Maranhão (ARPEN-MA) informa que o estado registra em média 545 casamentos por ano envolvendo menores de 18 anos (ano base 2018-2022) no âmbito estadual. Em 2018 foram registrados 510 casamentos com menores, em 2019 foram 598, em 2020 houve 549, em 2021 589, e em 2022 caiu para 480.

“Apesar da proibição legal do casamento com adolescentes com menos de 16 anos desde 2019, o Brasil figura como o 6º país do mundo em casamentos infantis (21,58 milhões), segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). O número equivale a um quinto das 104,5 milhões de mulheres da população brasileira, segundo o Censo Demográfico 2022. Mais de 6 milhões de bebês nasceram de mães adolescentes no Brasil, no período de 2008 a 2019, com maioria formada por meninas indígenas e negras das regiões Norte e Nordeste”, comentou Ana Nery, especialista em gênero e inclusão da Plan Brasil.

Codó: alto índice de gravidez na adolescência

O casamento infantil priva meninos e meninas de seus direitos fundamentais, interrompe sonhos e perpetua ciclos de exclusão social.

“A gente observa que ainda existe uma percepção cultural baseada num sistema de crenças sobre o que chamamos de normas prejudiciais de gênero que reforçam e naturalizam o casamento infantil. Tanto a pesquisa “Tirando o véu” como os dados mais atuais sobre o tema, trazem consequências incomuns quando olhamos para o Brasil e mais especificamente para o Maranhão”, aponta Ana Nery.

Dentre as consequências destacam-se:

  • Evasão e interrupção da escolaridade. A evasão escolar é uma das consequências mais visíveis dessa realidade. Dados da PNAD Contínua (2022) mostram que quase 24% de jovens de 14 a 29 anos que abandonaram a escola o fizeram por gravidez ou cuidado com filhos e filhas.

“Em São Luís (MA) e Teresina (PI), o cenário se soma a deficiências estruturais nos serviços de saúde e educação, dificultando o acesso ao acompanhamento pré-natal adequado e à permanência na escola. Em Codó (MA), com um IDEB de apenas 4,0 nos anos finais do ensino fundamental, meninas grávidas e mães enfrentam vulnerabilidades educacionais ainda mais severas”, destacou Ana Nery.

  • Gravidez precoce associada ao casamento ou união forçada: uniões precoces muitas vezes coexistem com gravidez na adolescência, o que gera dupla vulnerabilidade, educacional e social

“Nos últimos dez anos, a gravidez precoce se revelou ainda mais desigual sob a perspectiva de raça/cor, segundo dados do SINASC/SUS: em 2013, as meninas negras compreendiam 67% do total de mães de 10 a 19 anos, enquanto, em 2023, elas são 73%.  No Maranhão, Codó figura entre os três municípios com maior índice de gravidez na adolescência, representando quase 26% do total de gravidezes de adolescentes do estado em 2022, segundo dados do governo”.

  • Trabalho doméstico e perda de oportunidades profissionais já que meninas casadas assumem papéis de cuidado doméstico e familiar, restringindo seu tempo para estudos, lazer ou para desenvolverem suas habilidades profissionais.
  • Vulnerabilidade econômica, pois ao terem a escolaridade prejudicada também encontram dificuldades de conquistar qualificação ou participar mais ativamente do mercado de trabalho formal.

“Essas evidências destacam a necessidade urgente de políticas públicas que promovam a igualdade de gênero, garantam o direito à educação e apoiem as meninas em uniões precoces, visando romper ciclos de pobreza e exclusão social”, aponta Ana Nery.

Entrevista

Casamento com criança abaixo dos 14 anos é estupro de vulnerável

Defensor Público Joaquim Gonzaga de Araújo Neto, titular do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente da DPE.

  1. O “casamento infantil’ na lei.

“O casamento infantil é um problema histórico e secular no nosso país e que vem sendo de algum modo observado e tratado, e até mesmo aparado aquilo que tem de arestas dentro do tema, apesar de ainda ser muito difícil lidarmos com a situação como um todo. Nós temos no nosso país aproximadamente 900.000 crianças ou adolescentes, no que se chama de casamento infantil, que é aquele abaixo de 18 anos. Até 2019, o casamento era permitido com a anuência dos pais ou responsáveis nos pais. Abaixo de 16, entre 14 e 16, havia uma permissão em situações em caso de gravidez e para evitar uma ação penal, e abaixo de 14, não era permitido de jeito nenhum, porque aí já se trata de estupro de vulnerável, ainda que se possa ter o argumento de que ela consentiu, enfim, ou qualquer coisa de que na comunidade é assim, de que a cultura é assim. A partir da lei 13811/2019 ela diz que a partir de 16 anos continua sendo permitido, mas essa permissão, essas exceções, são retiradas do ordenamento jurídico. É proibido, terminantemente proibido o casamento abaixo de 16 anos. Quando a gente fala de casamento, a gente tá falando do casamento civil nos moldes civil.”

    O casamento infantil é um problema histórico e secular no nosso país 

    1. E no caso de união estável ou morar junto?

    “Em muitos pontos a união estável se equiparou ao casamento civil. E particularmente eu tenho uma visão restritiva da situação. Eu posso dizer que na minha visão continua proibido, não só o casamento abaixo de 16 como a união estável também. Esse é o entendimento da parte, digamos, prevalente da doutrina, de quem escreve sobre o tema, e essa visão também tende a prevalecer nos tribunais. A gente vê que a grande maioria das relações ocorrem no subterfúgio. Elas não são publicizadas.”

    1. Qual o impacto dessa situação entre meninos e meninas?

    “Quando se trata de casamento infantil a gente pode fazer um link muito forte com a pobreza, a desigualdade social, as populações vulneráveis, falta de escolaridade, alto índice de gravidez, alto índice de mortalidade materno infantil ligada à gestação precoce. As consequências são as mais terríveis, porque a criança e o adolescente, tanto juridicamente, como cientificamente, são seres em desenvolvimento, e esse casamento infantil vai trazer uma série de prejuízos no emocional, no psicológico. Geralmente há a retirada da escola, geralmente há um desequilíbrio de igualdade de poder dentro dessa relação, geralmente é uma criança com uma pessoa muito mais velha, e que, sem dúvida, a chance é muito maior de gerar violência doméstica, enfim… Alguns casos são os mais terríveis, vai até para o cárcere privado ou coisa do tipo.”

    4. A vulnerabilidade social conta muito.

    “Sim. O sujeito se aproveita de uma vulnerabilidade do todo, como se estivesse fazendo uma compra, isso acontece muito. Então, a gente, enquanto instituição que promove a defesa dos direitos humanos, que promove a defesa dos direitos da criança, não pode concordar com isso. A gente não pode achar que isso é normal.”

    5. Que era a família que deveria proteger…

    “Sim. Uma criança, um adolescente, eles tem responsáveis legais que possuem um poder familiar sobre ela que são os pais e quando essa criança, adolescente passa a. viver maritalmente com um estranho há uma situação de risco. Há uma situação não só de irregularidade, como era antes, mas de ilegalidade, porque os guardiãs legais, os donos do pátrio poder, pai e mãe não estão dando àquela criança, àquela adolescente, o cuidado devido. Não há encaixe legal no nosso ordenamento jurídico. Esse tipo de situação. Só é possível o casamento a partir dos 16 com a autorização dos pais ou responsáveis. Simples assim. Abaixo disso, criança e adolescente tem que brincar, tem que estudar, tem que se desenvolver tanto no físico, como no mental, como no intelectual, se preparar para a vida e não ser colocada de forma abrupta dentro de uma relação extremamente complexa, como é o casamento”.

    34 mil crianças em união conjugal

    De acordo com os dados do último Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2022, o Brasil tinha 34 mil crianças e adolescentes de 10 a 14 anos que viviam em união conjugal. A maior parte dessas crianças (86,6%) estava em uma união consensual.

    Para Ana Nery, os apontamentos para erradicar essa situação passam pela construção de políticas públicas.

    “É preciso dar mais atenção à legislação, derrubando a brecha da lei brasileira para proibir completamente o casamento antes dos 18 anos. Países como República Dominicana, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Porto Rico e Peru já proibiram o casamento para menores de 18 anos”.

    Ela destaca também a realização de campanhas de sensibilização sobre o tema, assim como debater e trabalhar a educação integral em sexualidade nas escolas, para que meninas e meninos tenham informações e conhecimento sobre sua sexualidade, métodos contraceptivos, prevenção sobre violências sexuais.

    O que diz a lei no Brasil sobre casamento infantil

    A Lei nº 13.811/2019 alterou o artigo 1.520 do Código Civil. Antes da mudança, o artigo 1.520 previa exceções para o casamento de menores de 16 anos em casos como gravidez ou “evitar imposição ou cumprimento de pena criminal”.

    Mas isso foi revogado. Agora o artigo 1.520 diz: “Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil (16 anos)”. Após a promulgação da Lei nº 13.811/2019, os cartórios de registro civil foram oficialmente orientados pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (ARPEN-Brasil) a negar qualquer pedido de casamento envolvendo menores de 16 anos.

    Embora a lei proíba o casamento formal antes dos 16 anos, muitas uniões informais ainda ocorrem na prática — ou seja, adolescentes que passam a viver junto com adultos sem registro oficial. Essas uniões não têm amparo legal, e podem configurar violência sexual, exploração ou abuso, especialmente quando há diferença de idade significativa.

Fonte: https://oimparcial.com.br/noticias/2025/11/entre-numeros-e-vidas-o-peso-da-uniao-infantil/