10 de novembro de 2025
Filhos do feminicídio: “Eles ainda perguntam pela mãe”
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O feminicídio, crime de ódio que tira a vida de mulheres apenas por serem mulheres, deixa cicatrizes que vão além das estatísticas. Por trás de cada caso, há filhos e filhas que crescem sem a mãe — e muitas vezes também sem o pai, preso, foragido, ou que após o ato de violência, tira a própria vida. No Maranhão, embora o número de feminicídios tenha diminuído nos últimos anos, o Estado começa agora a encarar uma consequência até então invisível: as crianças órfãs do feminicídio.

Em um bairro popular de São Luís, uma avó de 58 anos cria sozinha três netos, desde que a filha, na época com 24 anos, foi morta pelo ex-companheiro em 2022. “Eles ainda perguntam pela mãe. O menor acha que ela foi viajar. A gente não sabe como explicar”, conta, em voz baixa, a costureira Ruth, nome que usamos para preservar a identidade dela e da família, a pedido.

Eles ainda perguntam pela mãe. O menor acha que ela foi viajar. A gente não sabe como explicar

A família vive de um benefício social e dos trabalhos de Ruth, enquanto espera o auxílio prometido pelo governo estadual para os órfãos do feminicídio. Histórias como essa se repetem por todo o estado.

Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, neste ano de 2025 já foram registrados 46 casos de feminicídio, ou seja 46 famílias desestruturadas. No ano de 2024, esse número foi ainda maior: 63 mulheres foram mortas em todo o estado, vítimas da violência de gênero.

Ainda em 2024, O Maranhão registrou um total de 17.832 atendimentos via ligue 180 – um crescimento de 99,7% em relação aos 8.928 atendimentos de 2023. No mesmo período, as denúncias saltaram de 1.896 para 2.833. No comparativo, 2024 representou um aumento de 26% desse tipo de crime em relação a 2023, quando foram registrados 50 casos.

Mas, para cada mulher assassinada, há filhos, sobrinhos e familiares que ficam sem chão. Embora o Governo do Estado e o Ministério Público tenham avançado no combate ao feminicídio, não há dados oficiais sobre quantas crianças ficaram órfãs em decorrência desses crimes.

O Ministério Público do Maranhão (MPMA) reconhece a lacuna e, desde 2024, desenvolve o projeto “Órfãos do Feminicídio: Sem Desamparo – Ministério Público garantindo direitos de quem ficou”, que busca identificar, acompanhar e garantir direitos a essas crianças e adolescentes.

Feminicídio deixa de 800 a 1.200 órfãos no Maranhão

Na última segunda-feira, 3, o projeto foi lançado com a presença de membros e servidores do MPMA, representantes de instituições parceiras e de entidades da sociedade civil organizada. Coordenado pelos Centros de Apoio Operacional do Tribunal do Júri (CAO-Júri), da Infância e Juventude (CAO-IJ) e de Enfrentamento à Violência de Gênero (CAO-Mulher), a iniciativa integra um conjunto de ações institucionais que visam à identificação dos órfãos, ao acompanhamento psicossocial e à efetivação dos direitos previstos na Lei Federal nº 14.717/2023 e no Decreto Federal nº 12.636/2025, que regulamenta a concessão de benefício financeiro a filhos e dependentes menores de 18 anos de mulheres vítimas de feminicídio.

O auxílio financeiro para os órfãos do feminicídio é estimado em meio salário mínimo por criança até completar 18 anos. A proposta se baseia na Lei Estadual nº 11.723/2022, que institui o Programa Órfãos do Feminicídio: Atenção e Proteção.

O promotor de justiça Sandro Lobato, coordenador do CAO-Júri, informou que os centros de apoio envolvidos no projeto irão apoiar os promotores de justiça com atribuições nas áreas do júri, da infância e da mulher para que tenham uma atuação integrada e integral em relação aos órfãos do feminicídio.

“A ideia é que, assim que ocorrer um feminicídio, e o Ministério Público for comunicado através do inquérito policial, os diversos segmentos da instituição buscarem a família para verem o que os órfãos estão precisando. Então vai ter um atendimento psicológico, um atendimento social, um atendimento de saúde e de educação”, esclareceu.

O membro do Ministério Público também explicou que, após a verificação de que no estado do Maranhão não existia um auxílio financeiro destinado às vítimas indiretas do feminicídio, que são os órfãos, foi feita uma sugestão de um projeto de lei para o auxílio financeiro estadual. “Depois de uma longa tramitação, o governador apoiou a ideia, que está na Assembleia Legislativa para votação”, completou.

Para o procurador-geral de justiça, Danilo de Castro, é necessário criar mecanismos para que o feminicídio e seus efeitos sejam combatidos em todas as esferas. “O Ministério Público está se voltando contra a violência praticada contra as mulheres e também para defender as crianças órfãs. Trata-se de um compromisso institucional e coletivo em favor da vida e do que é justo”.

Segundo a deputada estadual Daniella, as estimativas apontam que, nos últimos sete anos, o crime de feminicídio deixou entre 800 e 1.200 órfãos no Maranhão. “São centenas de crianças precisando dessa mão amiga, do amparo do poder público. Esse projeto tão importante não pensou somente no lado financeiro, mas em todo um contexto maior para abraçar e amparar essas crianças”.

Segundo a deputada estadual Daniella, as estimativas apontam que, nos últimos sete anos, o crime de feminicídio deixou entre 800 e 1.200 órfãos no Maranhão. “São centenas de crianças precisando dessa mão amiga, do amparo do poder público. Esse projeto tão importante não pensou somente no lado financeiro, mas em todo um contexto maior para abraçar e amparar essas crianças”.

A ausência que se multiplica

As consequências do feminicídio para os filhos são devastadoras. Além do trauma emocional, as crianças enfrentam instabilidade financeira, abandono escolar e ruptura de vínculos familiares. Em muitos casos, o autor do crime é o pai — o que deixa os filhos sem as duas figuras parentais. “Essas crianças perdem tudo: a mãe, o lar, a referência afetiva. E ainda convivem com o estigma. São as vítimas invisíveis da violência de gênero”, afirma a psicóloga social Ana Cláudia Silva, que atende famílias em situação de vulnerabilidade.

Essas crianças perdem tudo: a mãe, o lar, a referência afetiva

No dia 16 de fevereiro deste ano, Cirani Lopes Ferreira, 41 anos, foi morta a facadas pelo companheiro dentro de casa, em Pedro do Rosário. Lourenço dos Santos Pereira, de 53 anos, morreu em confronto com a polícia.

Cirani foi morta na frente dos filhos, mas antes de falecer ela reuniu forças para gritar para os filhos correrem, que foi o que os salvou. Essas crianças perderam a mãe de forma trágica, e ainda foram despejadas da casa que moravam de favor.

Em outubro passado, um vídeo que viralizou na Internet gerou comoção e suscitou que o projeto, de iniciativa do MPMA, tomasse força na Assembleia Legislativa para a criação de um auxílio financeiro para esses órfãos. No vídeo, um dos filhos de Cirani, de 7 anos, aparece chorando, e com uma dor que atravessa a tela, conta sobre a falta que a mãe faz e de como seria a vida dele caso ela ainda estivesse viva. “Se minha mãe estivesse viva, eu não estaria aí, todo sujo”, lamenta a criança.

Se minha mãe estivesse viva, eu não estaria aí, todo sujo

Após a repercussão do vídeo, uma vaquinha virtual foi criada para dar um novo lar às crianças, com total êxito em poucos dias. Na ocasião do recebimento da nova casa, o mesmo garoto, que lamentava a ausência da mãe, voltou a comover, entre falas e choros: “Como seria bom que minha mãe estivesse aqui para ver isso”.

Como seria bom que minha mãe estivesse aqui para ver isso

O papel do Estado e da sociedade

Especialistas destacam que o Estado precisa agir em três frentes: prevenção, proteção e reparação. Isso significa ampliar redes de proteção à mulher, fortalecer canais de denúncia, mas também criar políticas duradouras para amparar os filhos que ficam.

No Maranhão, o MPMA e o Governo do Estado vêm articulando ações com a Defensoria Pública, Conselhos Tutelares e Secretarias de Assistência Social. A meta é que, até 2026, todos os casos de feminicídio sejam acompanhados por uma equipe intersetorial.

O projeto “Órfãos do Feminicídio: Sem Desamparo – Ministério Público garantindo direitos de quem ficou”, também prevê parcerias com universidades e a assinatura de termos de cooperação técnica para oferecer acompanhamento jurídico e psicossocial às vítimas.

Garantir amparo a essas crianças é investir na reconstrução de futuros. “Quando a mãe se vai, quem cuida de quem fica?”, questiona a psicóloga Ana Cláudia. A resposta, segundo os especialistas, deve vir da sociedade como um todo — não apenas do Estado.

Quando a mãe se vai, quem cuida de quem fica?

Mais sobre o projeto

Desde abril de 2025, o MPMA tem atuado junto ao Poder Legislativo Estadual para alterar a Lei Estadual nº 11.723/2022, que instituiu o “Programa Órfãos do Feminicídio: atenção e proteção”. A proposta apresentada pelo Ministério Público pretende incluir contrapartida financeira estadual para ampliar o alcance do benefício.

Além da proposta legislativa, o MPMA tem buscado articulação interinstitucional com órgãos como o INSS, a Secretaria de Estado da Mulher, a Secretaria de Direitos Humanos e Participação Popular e o Ministério Público Federal, com o objetivo de garantir a efetividade do benefício federal e estadual.

IX Semana de Combate ao Feminicídio

Começou no dia 4 (terça-feira) a IX Semana de Combate ao Feminicídio, um chamado à ação — um movimento que une órgãos públicos, sociedade civil e organizações não governamentais em defesa da vida das mulheres. Todo o Estado se mobiliza. Escolas, praças, universidades e comunidades se tornam palcos de conscientização, diálogo e esperança.

“E ao longo de todo o mês, as ações continuam ecoando — porque a luta contra o feminicídio não cabe em uma só semana. Este é um convite — e também um desafio. Que cada um de nós seja parte dessa rede de cuidado, denúncia e transformação. Por amor e respeito às mulheres, o tempo de agir é agora”, convida a Casa da Mulher Brasileira.

“Por amor e respeito às mulheres, o Maranhão se une em uma grande mobilização pela vida. Durante esta semana, vamos destacar ações, palestras e também ferramentas que podem salvar vidas — como o app Salve Maria. Com ele, qualquer pessoa pode denunciar casos de violência de forma segura, anônima e imediata. Um simples toque pode ser o início de uma nova história”, destaca Carol Costa, Presidente da Associação Somos Todos Mariana, que é uma das realizadoras da Semana, ao lado da Polícia Civil do Maranhão e Casa da Mulher Brasileira.

Feminicídios no Maranhão

2022 – 69
2023 – 50
2024 – 63
2025 – 46 até outubro

Para denúncia

190 – Ciops (Centro Integrado de Operações de Segurança)
181 – Disque-Denúncia Maranhão
Aplicativo Salve Maria Maranhão
Delegacia Online

Fonte: https://oimparcial.com.br/noticias/2025/11/filhos-do-feminicidio-eles-ainda-perguntam-pela-mae/