
Fomentar debates e alimentar a circulação de ideias são funções primordiais no cinema proposto por Kleber Mendonça Filho, que projeta como modelo exemplos de filmes duradouros, como O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) e São Paulo S/A (1965).
A visão histórica do criador de sucessos como Bacurau e Aquarius casa à luva com a disposição do 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, plataforma de pré-lançamento de O agente secreto, exibido na abertura do evento, duplamente premiado no Festival de Cannes (com direito a melhor ator para Wagner Moura), desde já, cotado para o Oscar, e que chega aos cinemas em novembro. Brasília teve o privilégio de assistir com antecedência ao filme, em duas disputadas pré-estreias, e de travar contato direto com o realizador pernambucano, eleito Melhor diretor em Cannes.
Observador do “trauma de memória” aplicado no Brasil, dada a anistia em fins dos anos 1970, entre outras coisas, ele demarca a “quebra na formação espiritual do nosso país”, além de não endossar esquecimentos coletivos.
Na frente de celebração com o novo longa, ele afirma: “Esse filme tem tido uma carreira muito prestigiosa e internacional. Estávamos nos Estados Unidos e teve uma sessão especial na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (que vota o Oscar), em Los Angeles. A reação ao filme é muito forte por sinal. Uma percepção universal, por mais que o longa seja extremamente brasileiro”.
Com que ânimo veio ao festival?
Hoje, aos 60 anos de festival, fico muito orgulhoso e feliz de colaborar com a história dele, oferecendo o longa para o evento. É um filme muito brasileiro no sentido de que ele olha para a história do país. Mas, na verdade, ele está olhando também para um período contemporâneo do país que, felizmente, está acabando essa semana, de uma maneira muito oficial, muito marcada.
Cotado para o Oscar, é difícil não comparar O agente com Ainda estou aqui… O que diz?
Eu vi Ainda estou aqui (filme nacional vencedor do Oscar) no Festival de Veneza. Comentei com Walter Salles (diretor daquele longa): “Existem dois irmãos que nunca se falaram, e não sabem um da existência do outro — O agente secreto e Ainda estou aqui. Ao dizer isso, acho que vejo a raiz de tudo, nos filmes de memória, de história, mas que têm estilos diferentes e têm pontos de vista diferentes. Acho incrível que os filmes se comuniquem e causem soma. O Walter Salles vai participar de uma conversa comigo no Museu da Academia (Los Angeles), no dia 19 de outubro.
Como conecta um tubarão e a perna cabeluda, elementos inesperados no filme?
Recife é uma cidade praieira. Lá, Tubarão (o filme de 1975) também foi um fenômeno cultural, com o impacto da obra do Spielberg, em fins dos anos 1970. E lá existe o problema real com tubarão.
Tudo isso, juntando, compõe parte com sentido para o filme. Quanto à perna cabeluda, explico: foi uma invenção do jornalismo policial dos anos 1970 no Recife, como um código para o que a polícia fez ontem à noite — espancou pessoas, levou para o hospital ou para prisão. Eles não podiam dizer abertamente o que aconteceu, e aí inventaram o código da perna cabeluda, que virou uma lenda urbana.
Eu, criança, ouvia minha mãe, lendo o jornal em voz alta: “Mas isso (escrito) é muito estranho. Não está no suplemento literário; está na página de polícia!”. E se lia: “A perna cabeluda veio quicando e atacou pessoas no Parque Treze de Maio”. É absurdo, é muito irreverente, é muito Recife.
Recife é personagem do filme, praticamente…
O centro do Recife que eu frequentava, desde criança, com meus pais. Lá, há a cacofonia incrível. Isso está no filme. Entra o pastor, gritando; o poeta da rua, gritando, irritando. Isso no meio dos ônibus, dos carros, das motos. Os vendedores, gente tocando no piano músicas do Richard Clayderman, sons do Kenny G. Conversei muito com a equipe de som que eu precisava de todos esses sons na mixagem. Este é o centro da cidade. Precisava da personalidade brasileira e de Recife.
Há menção, ao fim do filme, de 1,3 mil empregados que trabalharam no longa, e a afirmação de cinema como formatação de indústria. É uma prestação de contas?
A mensagem já estava no filme Bacurau, no momento em que o cinema foi desmontado, em que a cultura foi desrespeitada e o MinC foi extinto.
É uma maneira de lembrar que a cultura é feita por trabalhadores, por homens, mulheres que trabalham todos os dias, fazendo cultura, teatro cinema, música, artes plásticas; tudo é trabalho e, dentro do discurso da extrema-direita com tendência fascista, a cultura é um inimigo.
Só que ao combater este inimigo, já que eles (fascistas) só entendem a escala da economia, eles acabam machucando a economia. A frase (ao fim do filme) é muito bem pensada para lembrar o óbvio. Que é o que você faz quando vive numa situação sem tendências democráticas.
Fonte: * Correio Braziliense
Fonte: https://oimparcial.com.br/noticias/2025/09/o-agente-secreto-e-um-filme-que-olha-para-a-historia-do-pais-diz-kleber-mendonca/