
Alguns dizem que para conhecer um local novo basta comprar uma passagem, organizar-se e viajar para o destino. Essa maneira, nem sempre tão simples, é, no entanto, a mais óbvia. Eu, leitora voraz desde que me entendo por gente, penso diferente: para conhecer um local novo, é interessante, sim, viajar até lá. Ora, quem não gosta de uma boa aventura? Mas, na falta de oportunidade, basta abrir um livro.
Os Tambores de São Luís (1975), clássico de Josué Montello, traz exatamente isso: uma volta às ruas de São Luís, uma legitimação da cultura negra no país e, claro, uma viagem no tempo por meio de uma história não linear.
Cinco décadas após o seu lançamento, a obra de Montello ainda mantém a sua relevância e se renova a cada leitura. Na criação, um romance ambicioso e detalhado sobre o século XIX, o autor traça um retrato detalhado da cidade na época, abordando tensões sociais, culturais e raciais que ainda ecoam no país até os dias de hoje. Mas o que faz esse escrito permanecer relevante meio século depois? Como sua narrativa dialoga com o cenário atual? Ao longo desta reportagem, exploramos essas questões e mergulhamos no legado deixado pelo livro.
O valor narrativo Montelliano
Publicado em 1975, o enredo gira em torno de personagens que representam diferentes camadas da sociedade ludovicense. De um lado, a elite escravocrata e os senhores de engenho, que resistem à abolição. De outro, escravizados e abolicionistas que desafiam o sistema vigente. No cenário, a cidade pulsa ao som dos tambores – símbolo da cultura negra e de resistência que, segundo Montello, proveniente do ruído da Casa das Minas, em São Luís, foi o que primeiro lhe aflorou à consciência para desenvolver o romance.
A narrativa tem início com Damião, um personagem verossímil, heroico e imperfeito. Quando o personagem sai para uma caminhada, iniciada às 22h, para ver o seu trineto, depara-se com um crime, o pontapé do debate que Montello evoca na obra. O fim da parábola ocorre 672 páginas depois, às 9h do dia seguinte. Em um relato de apenas uma noite, a história retrocede aos vários ciclos da história maranhense, misturando presente e passado, ao mesmo tempo em que busca reconstruir as lutas do negro como parte ativa e consciente da identidade brasileira, que perdura até os dias atuais.

Na década de 1970, quando Montello publicou Os Tambores de São Luís, ele se conecta a duas trajetórias de autores que também exploraram a questão do povo negro no Maranhão e no Brasil. Como destaca José Neres, professor, escritor e membro da Academia Maranhense de Letras: “Aluísio Azevedo, que em 1881 com O Mulato, traz à tona a relação com o racismo e a percepção sobre as pessoas negras no Maranhão e no Brasil como um todo, e o livro do Nascimento Morais, Vencidos e Degenerados. Ao seguir Damião, o romance se desenrola em torno de um crime que se revela a chave para discutir a escravização dos negros no Brasil. O autor, de forma inteligente, usa esse incidente como porta principal de entrada para a discussão sobre as percepções que temos da escravidão.”
A narrativa rica de Josué Montello já chegou a ser considerada o “Guerra e Paz (Tolstói) brasileiro”, com personagens variadas e narrativa épica. Entre as principais curiosidades da produção, a mais extraordinária está pautada na quantidade de personagens narradas no livro: mais de 400. Essa multidão de figuras literárias nasce da fusão entre ficção e realidade, sendo composta tanto por pessoas reais que existiram quanto por personagens imaginados pelo autor.
Em seus diários e em entrevistas, incluindo uma registrada em um livreto publicado pela Casa de Cultura que carrega o seu nome, Montello explica seu processo criativo, revelando como encontrava inspiração para construir essas personalidades, como as visualizava e as fixava em sua memória antes de transportá-las para o papel. Para caracterizar o estilo descritivo de Josué, José Neres diz: “É um estilo ágil, fluido, cheios de nuances nas quais se percebe sempre a percepção de um autor com uma construção das personagens, a descrição física, descrição psicológica e também a descrição do próprio ambiente, sendo que algumas vezes o ambiente também faz parte do próprio cenário narrativo dele.”
No que diz respeito ao destaque, desde o seu lançamento, Os Tambores de São Luís foi bem recebido pela sociedade. Hoje, não é diferente. Trata-se de um instrumento não só de leitura para fins de entretenimento, como também, é uma fonte histórica. Sobre isso, José Neres acrescenta: “A crítica da época, até onde se sabe, foi carinhosa com ele […] Hoje, já no século 21, a obra já é tida como um grande best-seller da literatura maranhense, no sentido de aceitação, não só no de vendas. A forma como é lida é porque Montello serve como fonte para várias monografias, dissertações, artigos, teses de doutorado. Ele já é visto com um olhar de uma pessoa que construiu um trabalho que, ao mesmo tempo, é literário e é sociológico.”
Casa de Cultura Josué Montello
Aos que desejam se aprofundar na literatura de Montello, a Casa de Cultura Josué Montello segue de portas abertas. Fundada pelo próprio autor, em 1983, na Casa estão armazenados os diários do escritor, bem como o manuscrito original da sua obra magna. Este é o espaço na capital maranhense reservado à preservação dos arquivos do escritor, em uma mistura de museu e biblioteca.

Sob a gestão da bibliotecária Joseane Souza desde 2007, a instituição promove exposições, palestras e projetos itinerantes Maranhão afora, principalmente, buscando aproximar as novas gerações do acervo de Montello. No local, também são realizadas palestras, exposições fotográficas, exibições de audiovisuais, além de, claro, é de onde parte uma porção considerável do incentivo ao ensino sobre a literatura Montelliana nas escolas.
Para comemorar o meio século de existência de Os Tambores de São Luís, a Casa de Cultura promete programação durante todo o ano. O início se dá a partir de 03 de abril, com o lançamento da versão em quadrinhos da história, realizada por Iramir Alves, em parceria com Ronilson Freire e Ron Freire, além de programações que serão incluídas na Academia Maranhense de Letras.
A O Imparcial, Joseane Souza contou que há, também, uma edição comemorativa do livro sendo desenvolvida: “A última edição foi publicada em 2019 pela Casa de Cultura. A demanda é muito grande, não só em São Luís, mas em todo o Brasil, então é importante que a gente tenha essa obra de volta.”

Além de romancista, Montello também escreveu contos, novelas, roteiros de teatro, ensaios e obras infanto-juvenis. Aprofundar-se em seu acervo é uma das formas de reconhecer que, de forma abrangente, um dos maiores autores nacionais dedicou a sua carreira para abordar temas pertinentes sobre a saga da luta negra no país, que se mantém relevante até hoje.
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Fonte: https://oimparcial.com.br/noticias/2025/03/os-tambores-de-sao-luis-50-anos-do-romance-que-ecoa-na-historia/