Tiros, facadas, espancamentos, atropelamentos, incêndio… crimes cometidos por homens contra mulheres. Os motivos? Fim do relacionamento, ou apenas por serem mulheres e não terem direito a uma vida de liberdade. Nos últimos dias, uma sequência de casos de feminicídio e tentativas de feminicídio causou indignação em todo o país. Essas tragédias representam um recorte de uma realidade cruel: quatro mulheres são vítimas de feminicídio todos os dias no Brasil. Só este ano, já são mais de mil casos registrados no país.
Para chamar a atenção de autoridades, da sociedade em geral, e principalmente dos homens, vários estados do Brasil se uniram em uma grande mobilização nacional que vai ocorrer no dia 7 de dezembro (domingo). O “Levante pela Vida das Mulheres” convoca todos a reagir, cobrar justiça e exigir políticas de proteção efetivas para garantir a segurança e a vida das mulheres.
Em São Luís, o movimento é puxado pelo Instituto Somos Todos Mariana, que convida todos a estarem às 9h, na Praça da Igreja do Carmo, durante a Feirinha (Centro).
“As mulheres estão morrendo. O Brasil vive uma escalada de violência que não pode mais ser ignorada e nós, como sociedade, precisamos romper o silêncio e ocupar as ruas com propósito, coragem e união. Homens e mulheres, jovens e adultos. Porque todos são chamados. Precisamos pressionar por mudanças reais: aprimorar as leis existentes, criar novas normas mais efetivas e garantir que cada mulher tenha o direito básico de viver sem medo. O Brasil precisa ouvir nossas vozes”, convida o Instituto.
Neste ano, o Maranhão registrou 47 feminicídios até o final de novembro deste ano. No ano de 2024, esse número foi ainda maior: 63 mulheres foram mortas em todo o estado, vítimas da violência de gênero. No comparativo, 2024 representou um aumento de 26% desse tipo de crime em relação a 2023, quando foram registrados 50 casos.
A violência de gênero continua avançando e segue um padrão que preocupa autoridades e entidades que atuam na defesa dos direitos das mulheres. Dados recentes sobre feminicídios registrados entre 2023 e 2025 mostram que o perfil das vítimas permanece praticamente o mesmo, revelando a persistência de fatores sociais e estruturais que dificultam o enfrentamento do problema.
A maior parte das mulheres assassinadas por motivo de gênero tem entre 20 e 39 anos, período marcado por relacionamentos estáveis e maior convivência com parceiros ou ex-parceiros — responsáveis por até 80% dos casos. As mortes ocorrem, na maioria das vezes, dentro da própria residência, indicando que o lar, considerado um espaço de segurança, continua sendo o cenário mais frequente de violência extrema.
Os métodos utilizados pelos agressores continuam variados, mas há um crescimento no número de crimes cometidos com armas de fogo, aumentando a letalidade e diminuindo as chances de socorro. O ciclo de violência, no entanto, quase sempre tem início muito antes: agressões psicológicas, ameaças e controle sobre a vida da mulher são relatados por familiares e sobreviventes como sinais que antecedem o feminicídio.
Alguns dados
- A maioria das vítimas tem entre 20 e 39 anos;
- Há uma concentração significativa entre mulheres de 25 a 34 anos — período em que muitas estão em relações estáveis, casamentos ou convivências;
- Também há registro crescente de feminicídios contra adolescentes (15 a 19 anos), muitas vezes ligados a relacionamentos abusivos precoces;
- Entre 70% e 80% dos casos são cometidos por companheiros ou ex-companheiros;
- O ciclo costuma envolver meses ou anos de violência psicológica, física e ameaças antes do crime fatal;
- Ex-parceiros representam risco elevado, pois muitos feminicídios ocorrem após o fim da relação — momento em que a mulher tenta romper o ciclo de controle;
- Mais de 60% dos feminicídios acontecem dentro da residência da vítima, evidenciando a violência doméstica como a principal origem do problema.
Contextos que antecedem o feminicídio
- Ciúmes excessivo;
- Isolamento social imposto à mulher;
- Ameaças constantes;
- Agressões anteriores não denunciadas;
- Dependência econômica do agressor;
- Tentativas anteriores de separação.
O agressor
Compreender quem é o agressor e quais fatores contribuem para esse crime é fundamental para preveni-lo. O agressor de feminicídio não surge do nada. Em grande parte dos casos, ele está inserido em uma cultura estruturada pelo machismo, pela ideia de posse sobre o corpo e a vida da mulher e pela crença de que conflitos afetivos devem ser resolvidos pelo controle ou pela força. Ciúme excessivo, sentimento de perda de poder, dificuldade em lidar com frustrações e separações são elementos recorrentes, mas não explicações suficientes. Nenhum deles justifica o crime.
Entrevista
O Imparcial conversou sobre o assunto com o psicólogo Jacques Alastair Martins. Jacques é Juiz de Paz, Perito Judicial no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher; e Facilitador de Justiça Restaurativa e Círculos de Construção de Paz.
O Imparcial – Que fatores psicológicos e sociais que podem contribuir para que um homem se torne um feminicida?
Jacques Alastair – Tais fatores estão por vezes entrelaçados, podendo ser foco de análise tanto numa perspectiva intrínseca quanto extrínseca. Por um lado, tem-se o estereótipo da “mulher submissa” e do “homem dominador/ onipotente” que sempre está com a palavra final em todas as dimensões do relacionamento. Infelizmente, ainda se ouve discursos como: “Homem é assim mesmo!” “Se está ruim com ele, pior sem ele. É melhor você aguentar.” Por outro, existe a dificuldade do próprio agressor lidar com suas frustrações, inseguranças e demais conflitos internos, sendo a agressividade e a violência, formas equivocadas expressar tais inquietações. Vale ressaltar que o ofensor pode estar em conflito com a sua própria orientação sexual e, numa tentativa de fuga, assume um relacionamento validado socialmente. Considerando que divergências em uma relação afetiva em dadas circunstâncias vão surgir, os comportamentos violentos são claras manifestações da baixa tolerância a tudo que ameaça diretamente os interesses do ofensor na dinâmica da relação.

Existe a dificuldade do próprio agressor lidar com suas frustrações, inseguranças e demais conflitos internos
Como um agressor de um feminicídio costuma perceber a mulher e a relação que tem com ela? Existe uma dinâmica psicológica que leva uma escalada da violência até o ponto do feminicídio?
O agressor muitas vezes costuma perceber a mulher através do fenômeno da objetificação que se contrapõe à perspectiva da humanização. Para conduzir a sua própria insegurança e conflitos particulares, o ofensor recorre aos excessos: não permite que a mulher trabalhe, estude, tenha amizades ou se divirta sem a sua presença. Utiliza a comunicação violenta na forma de gritos, palavras e expressões pejorativas que impactam na autoestima da mulher, gerando dores proporcionais às agressões físicas. Tais ações são fortalecidas por uma dinâmica cultural aclama o “homem com H maiúsculo”, que não chora, não demonstra fraqueza, que manda em tudo e em todos do lar. Diante do exposto, é plausível conceber que em determinadas situações, o agressor não gosta da sua companheira; gosta da sensação de estar no domínio e dos privilégios sociais que esse relacionamento proporciona. Embora cada situação apresente uma dinâmica psicológica específica, alguns pormenores são comuns no ciclo da violência, que ganha contornos de maneiras muito sutis até atingir o clímax: pode iniciar com proibições, restrição da convivência social/comunitária, tentativas de silenciamento, afastamento de atividades profissionais e recreativas, dentre outras ações. Quando a mulher decide se opor a tal regime de servidão com intensidade pondo um fim na relação, o ofensor recorre a meios criminosos para lidar com a negativa.
O agressor muitas vezes costuma perceber a mulher através do fenômeno da objetificação que se contrapõe à perspectiva da humanização
Os sentimentos da família da vítima de feminicídio todos sabemos, mas e como ficam a da família do agressor?
A situação da família do agressor vai depender dos valores e interesses cultivados ao longo da história de vida de seus membros. Se tais princípios estiverem de acordo com a perspectiva da humanização dos relacionamentos, dos direitos das mulheres defendidos ao longo dos anos e que por muito tempo foram alvo ataques e questionamentos, a sensação de culpa e remorso pode se instalar. Desse modo, destaca-se a necessidade de acompanhamento psicossocial para ambos os lados, de modo a sanar as dificuldades que porventura surjam, para restaurar vínculos, para promover a cultura da paz. Quando há crianças envolvidas, o cenário pode ser ainda mais desafiador, uma vez que traumas vivenciados nessa fase de desenvolvimento podem repercutir por toda a vida, quando não manejados corretamente.

Como prevenir o feminicídio em uma sociedade machista, com fatores que ainda estruturam a desigualdade de gênero?
Da mesma forma que a problemática do feminicídio é resultado da convergência de múltiplos fatores, a sua prevenção segue a mesma configuração: trata-se de um esforço coletivo, com vários partícipes: do vizinho da vítima às autoridades governamentais. Cada vez que você promove a ideia de que a mulher é livre para entrar e sair de um relacionamento, de escolher sua profissão, de estudar, trabalhar sem ser punida socialmente, está contribuindo para a derrocada de discursos machistas que preconizam a figura da mulher incondicionalmente subordinada ao homem. As políticas públicas assistenciais, os sistemas de justiça, autoridades governamentais, escolas e a sociedade civil em geral devem se mobilizar para romper com tais paradigmas que inferiorizam a mulher. Por sua vez, sempre que uma música, post de redes sociais, frases e outros elementos que fazem apologia à violência contra a mulher são compartilhados e ovacionados, o sistema machista se fortalece.
Fonte: https://oimparcial.com.br/noticias/2025/12/sao-luis-no-levante-pela-vida-das-mulheres/
