
Quando a cultura se torna palco de disputas jurídicas e políticas, a discussão ultrapassa a dimensão do entretenimento e revela o embate entre o direito ao lazer e a responsabilidade na gestão dos recursos públicos. No caso de São Luís, cidade marcada por fortes tradições culturais e pela luta diária contra carências estruturais, a contratação de um show milionário em meio a tantos problemas sociais suscita reflexões que vão além da música.
No dia 8 de setembro de 2025, quando a capital maranhense completa 413 anos de fundação, está previsto o show do cantor sertanejo Gusttavo Lima. A apresentação, entretanto, tornou-se alvo de questionamento judicial. No último dia 1º de setembro, os advogados Gilmar Pereira Santos e Josemar Pinheiro ingressaram com uma ação popular pedindo a anulação do contrato firmado entre a Prefeitura e o artista, no valor de R$ 1,2 milhão.
O pedido de urgência foi distribuído à Vara de Interesses Difusos e Coletivos da capital, devido à proximidade do evento. A ação questiona a contratação com base em indícios de disparidade abusiva nos valores, ausência de critérios objetivos e possível favorecimento político ou pessoal, apontando violação aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
De acordo com os advogados, o cachê acordado com Gusttavo Lima é quase o dobro do que costuma ser pago a outros artistas nacionais de grande porte, cujos valores variam entre R$ 500 mil e R$ 640 mil. Para eles, a diferença “exorbitante” evidencia falta de critério técnico e razoabilidade econômica, especialmente diante da realidade financeira do município e das demandas sociais reprimidas.
Questionados sobre o impacto da contratação para os músicos e demais profissionais culturais da cidade, o advogado Josemar Pinheiro, um dos autores da ação popular, destacou a desigualdade entre talentos locais e artistas de fora:
“Há algum tempo temos observado esse descompasso de contemplação do Poder Público Municipal com a cultura local, notadamente com a produção cultural nativa, a chamada ‘prata de casa’. Acabaram-se as antigas promoções de premiação literária e artístico-musicais, como o Circo da Cidade, apresentações de cantores, brincadeiras e manifestações culturais comuns em bairros periféricos, peças teatrais, salvo algumas já consagradas como a Paixão do Anjo da Guarda ou o Show do Mara na Concha Acústica. Estamos assistindo ao esvaziamento da praça local em favor de bandas e artistas forâneos, como Gustavo Lima, que não têm raízes identitárias ou ligação com a memória cultural e histórica de São Luís.”, ressaltou o advogado.
Impacto sobre cultura e tradição ludovicenses
Outro ponto de crítica é a opção pelo artista de fora em detrimento dos talentos locais, que possuem reconhecimento regional, mas enfrentam dificuldades para manter suas atividades culturais, com escassez de apresentações e até atrasos nos pagamentos por parte do poder público.
Na ação os autores reforçam que a escolha de um artista nacional de grande renome, sem relação com a cultura local, configura violação à impessoalidade:
“É indubitável que o princípio da impessoalidade deve nortear a escolha de manifestações artístico-musicais. Há um evidente afastamento da Secretaria Municipal de Cultura das decisões emanadas do Conselho Municipal de Cultura, que deveria participar ativamente do planejamento e da seleção de artistas. Essa prática desrespeita conferências municipais e a legislação vigente, incluindo o Estatuto da Cidade, que estabelece mecanismos de participação e compartilhamento com artistas, produtores e representantes culturais”, disse Josemar Pinheiro.
Sobre a moralidade e o uso dos recursos públicos, o advogado acrescentou: “Existindo orçamento municipal aprovado previamente pela Câmara, mesmo havendo possibilidade de dispensa de licitação para casos emergenciais — o que não se aplica aqui —, seria adequado abrir um edital público para essas apresentações. Isso evita que decisões fiquem ao alvedrio do gestor e da Secretaria de Cultura, prevenindo práticas nocivas ao erário, como a chamada ‘rachadinha’, que vem sendo combatida judicialmente em ações populares e civis públicas”, pontuou o advogado.
O cenário ganha contornos ainda mais sensíveis quando comparado à realidade social da capital. São Luís enfrenta em 2025 problemas crônicos de infraestrutura, mobilidade urbana deficiente, saneamento básico inadequado, desigualdade social e falhas no acesso a serviços públicos essenciais.
A ação cita como exemplo, que em 25 de maio deste ano, uma meios de comunicação noticiaram uma decisão judicial, onde a qual obrigava o Governo do Estado e a Prefeitura a garantirem tratamento para doenças inflamatórias intestinais, devido à falta de infraestrutura médica. Já em novembro de 2024, o Jornal Nacional revelou que 40% das moradias do Maranhão não possuem banheiro, com a capital ocupando a segunda pior posição entre as capitais nordestinas nesse quesito.
As críticas também se apoiam em um debate nacional. Diversos projetos legislativos tentam regulamentar a contratação de artistas com dinheiro público, entre eles o PL 3364/2025, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-RS), que pretende criar regras mais claras para essas contratações. Ações populares semelhantes, movidas por cidadãos e pelo Ministério Público, já resultaram na suspensão de contratos e até na condenação de gestores por prejuízo ao erário.
O documento cita, o administrador público Willyan Kayser da Rosa, em artigo intitulado “Gestores Públicos, entre a Vaidade e a Humildade”, onde o mesmo observa como a vaidade pode afastar gestores da realidade da população. Ressaltando que, a metáfora do “pão e circo” é lembrada para ilustrar como espetáculos caros podem servir para mascarar os problemas reais de uma cidade.
No caso de São Luís, a escolha de privilegiar um cachê milionário para um artista nacional, ignorando artistas locais e diante de tantas carências estruturais, é vista por críticos como um desrespeito à sociedade e à própria história da cidade que busca celebrar.
Quanto às chances de suspensão do contrato diante da proximidade do evento, o advogado Josemar Pinheiro se mostra cauteloso, mas otimista: “Cada juiz é uma cabeça, e cada sentença depende da interpretação do magistrado. Com base em nossa experiência em outras ações populares, já obtivemos liminares suspensivas e decisões condenatórias em casos de atos que violavam moralidade e licitude administrativa. As decisões judiciais, nesse caso, devem refletir o interesse da comunidade e proteger a cultura local, que é a alma do povo ludovicense, e não ceder ao espetáculo distante que ignora tradições e práticas culturais autóctones”, concluiu Josemar Pinheiro por meio de nota oficial.
A Procuradoria Geral do Município de São Luís, se pronunciou sobre a questão a O Imparcial, ressaltando que: “A Procuradoria-Geral do Município informa que, até o momento, não tomou ciência da decisão proferida no referido processo”, diz o documento.
Vale ressaltar que a ação judicial, em análise na Vara de Interesses Difusos e Coletivos, sustenta que a contratação fere princípios constitucionais da administração pública. No documento os autores também criticam a escolha de um artista de fora em detrimento de músicos locais, enquanto a capital enfrenta graves problemas de infraestrutura, saúde e saneamento.
Fonte: https://oimparcial.com.br/noticias/2025/09/show-de-gusttavo-lima-em-sao-luis-vira-alvo-de-acao-judicial/