20 de setembro de 2025
A perplexidade da política e o silêncio que interroga
Compartilhe:

“Alguns amigos reclamam que praticamente não tenho falado em Lula ultimamente. É fácil ver por quê. O principal desafio ao Brasil no seu entorno geográfico é a possibilidade de invasão da Venezuela pelos Estados Unidos. México e Colômbia posicionaram-se firmemente contra. Lula diz que é neutro. O principal desafio na política interna, no plano institucional, são as votações esdrúxulas do Congresso sobre, por exemplo, a chamada “PEC da Bandidagem”. Lula declarou que não é parlamentar e liberou a bancada do PT. Eu ainda não decidi se se trata de sabedoria ou de covardia. Preciso esperar mais.” Cesar Benjamin.

Essa reflexão de Cesar Benjamin ecoa como um sino de consciência em uma praça vazia. Ela não se limita à figura de Lula, mas reverbera na atmosfera rarefeita do Brasil contemporâneo, onde a política se tornou espetáculo, a informação se converteu em ruído, e as instituições da República disputam entre si um protagonismo desordenado que ameaça dissolver a própria ideia de institucionalidade. Não se trata de mera hesitação individual. É a perplexidade de todos nós diante de uma engrenagem que perdeu a harmonia, diante de poderes que se recusam a dialogar e que preferem a disputa simbólica ao exercício da responsabilidade pública.

Vivemos um tempo em que os três poderes parecem ter se transformado em gladiadores dentro de uma arena queimada pelo sol. O Executivo age com a teatralidade de quem mede cada palavra para não se comprometer, e muitas vezes prefere a omissão à tomada de posição. O Legislativo inventa PECs e emendas que funcionam como instrumentos de chantagem e moeda de troca, convertendo o orçamento em propriedade de grupos parlamentares que se sentem donos da chave do cofre nacional. O Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal, assume para si o protagonismo político, intervindo não apenas como guardião da Constituição, mas como ator de primeira ordem, assumindo funções normativas e até executivas. E assim o jogo institucional se torna um rally, uma corrida onde não há linha de chegada, apenas curvas perigosas que aumentam a velocidade do colapso.

O silêncio diante de Lula não é silêncio de indiferença, é silêncio de perplexidade. O presidente que voltou ao poder em meio a uma atmosfera de esperança democrática parece preferir o papel de equilibrista sobre a corda bamba. Neutralidade diante da ameaça de invasão da Venezuela é neutralidade diante da história, e declarar-se ausente das votações parlamentares é abrir espaço para que um Congresso já capturado por interesses privados amplie sua dominação sobre o orçamento público. É possível chamar isso de sabedoria estratégica, como sugere Cesar Benjamin, ou de covardia diante de um cenário onde o conflito é inevitável. O fato é que, seja qual for a interpretação, o país assiste a uma erosão lenta e contínua do sentido de autoridade e responsabilidade.

O que vemos não é apenas a disputa política, mas a falência da informação. O noticiário se fragmenta em versões contraditórias, replicadas em velocidade de relâmpago, até que nenhuma versão resista à verificação, porque nenhuma versão carrega consistência. A imprensa, perdida em meio ao mar de narrativas, já não oferece um porto seguro de interpretação. Os cidadãos flutuam entre manchetes e postagens, ora crendo, ora duvidando, ora desistindo de buscar qualquer verdade. A multiplicidade de versões não expande a liberdade de escolha, apenas destrói a possibilidade de confiança.

Não se trata apenas da crise da política, mas da crise da sociedade cintida em sua dívida histórica, cultural e social. O Brasil nunca saldou a dívida de sua desigualdade estrutural, de sua herança escravista, de sua incapacidade de construir um projeto comum. Essa dívida se manifesta agora em um tempo onde a política virou espetáculo, onde a cultura é consumida como produto efêmero, onde a ideologia se tornou caricatura de si mesma. O povo brasileiro vive encurralado entre poderes que falam demais e não ouvem, entre instituições que se proclamam guardiãs da República enquanto a República se desfaz sob seus pés.

As pesquisas eleitorais surgem como sintomas dessa perplexidade. Medem oscilações de popularidade, como se a democracia fosse um termômetro de temperatura passageira. Mas essas pesquisas não conseguem capturar a profundidade da crise. Não se trata apenas de medir aprovação ou rejeição, mas de perceber o esgarçamento da confiança entre governantes e governados, entre representantes e representados, entre Estado e sociedade. A confiança é o tecido invisível que sustenta a democracia, e esse tecido está em frangalhos.

Ao mesmo tempo, a vida cotidiana continua. O trabalhador levanta cedo, enfrenta transportes caóticos, salários minguados, insegurança urbana, serviços públicos degradados. As famílias se reinventam para sobreviver em meio ao custo de vida crescente, à violência que ronda os bairros, à falta de horizonte para os filhos. A política institucional, no entanto, parece orbitando em outro planeta. As votações no Congresso sobre a chamada PEC da Anistia ou a ampliação das emendas parlamentares se dão em linguagem cifrada, em ritos parlamentares que parecem desprovidos de relação com a vida concreta. E quando há relação, é apenas para piorar, porque cada nova manobra representa menos transparência, menos responsabilidade, mais captura do Estado por interesses privados.

O silêncio diante de tudo isso é um silêncio que interroga. Não é o silêncio do conformismo, é o silêncio do cansaço. Um cansaço que pergunta se ainda faz sentido acreditar na democracia quando ela é sequestrada por elites que não a levam a sério. Um cansaço que pergunta se ainda faz sentido confiar na imprensa quando ela se perde na pressa de publicar antes de compreender. Um cansaço que pergunta se ainda faz sentido esperar de um líder como Lula uma postura de grandeza, quando ele prefere a neutralidade, quando prefere liberar sua bancada, quando prefere deixar o curso dos acontecimentos como se a história fosse uma correnteza sem margens.

O Brasil é um país que exige coragem, e talvez o que mais falte hoje seja coragem. Coragem de dizer não a PECs que desfiguram a Constituição. Coragem de dizer não ao orçamento sequestrado. Coragem de dizer não à neutralidade diante da guerra. Coragem de dizer não ao espetáculo da informação que mais desinforma do que esclarece. Coragem de dizer não ao papel de cada poder transformado em caricatura de si mesmo. Coragem de dizer sim ao diálogo, à transparência, ao compromisso com os que mais sofrem.

A narrativa de Cesar Benjamin nos oferece uma imagem clara: ainda não sabemos se estamos diante de sabedoria ou covardia. Essa é a encruzilhada. Mas talvez o problema não seja apenas Lula. O problema é que todo o sistema político parece ter escolhido a hesitação como estratégia, como se a hesitação fosse prudência. Mas a hesitação prolongada se converte em paralisia, e a paralisia em decadência.

A sociedade brasileira está cintida por sua dívida com a história, com a verdade, com a democracia. O silêncio de uns, o protagonismo excessivo de outros, o ruído incessante da imprensa, tudo compõe um cenário de crise que não oferece horizontes claros. Mas talvez seja exatamente aí que resida a oportunidade. O silêncio pode ser também espaço de reflexão. E a reflexão pode ser a semente de uma nova coragem. O Brasil precisa encontrar a palavra justa, precisa encontrar o gesto justo, precisa reencontrar a confiança que sustenta uma sociedade.

Não é fácil, e talvez não seja rápido. Mas é necessário. Porque a alternativa ao silêncio que interroga não é a palavra que esclarece, mas o grito que destrói. E já temos gritos demais.

       * Paulo Baía é sociólogo, cientista político, ensaísta e professor da UFRJ

Fonte: https://agendadopoder.com.br/a-perplexidade-da-politica-e-o-silencio-que-interroga/