
Decano do Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes afirma que o relatório da Polícia Federal, que embasou a denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente Jair Bolsonaro pelos crimes de tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito, aponta uma coordenação intensa e “proximidade, inclusive, de execução”.
Mendes também critica a tolerância do Exército com os acampamentos que antecederam os atos antidemocráticos de 8 de janeiro – eventos que, em sua avaliação, estão diretamente ligados à articulação golpista, como sustentado na peça acusatória apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. “Foram eles que deram assentimento, forneceram luz, forneceram água para essas pessoas”, afirma.
Em entrevista ao Estadão, concedida poucas horas antes do envio da denúncia ao STF na terça-feira, 18, Gilmar Mendes avalia que a cogitação e preparação de atos para tumultuar ou inverter a cena política em crimes como golpe de Estado já são passíveis de punição pela legislação. O ministro rebate as declarações de Bolsonaro, que alega estar sendo perseguido politicamente – tese que defendeu, inclusive, em reunião com o relator da OEA, Pedro Vaca, na última semana. “Isso não existe. A rigor, o presidente foi eleito, disputou uma segunda eleição, a reeleição, e perdeu dentro de um ambiente absolutamente democrático”, diz.
Mendes descarta ainda a viabilidade de um projeto de anistia para os envolvidos nos atos de 8 de janeiro, que poderia beneficiar Bolsonaro, afirmando que alguns crimes são ‘muito próximos do terrorismo’ e, por isso, não deveriam ser contemplados.
Sobre as críticas à atuação do Supremo, o ministro afirma que a Corte não comete excessos, tampouco legisla ou interfere em políticas públicas, e vê como parte do debate democrático os projetos que tramitam no Congresso para restringir seus poderes. “Essas questões serão submetidas ao próprio Supremo Tribunal Federal, que apreciará”.
Confira a seguir a íntegra da entrevista concedida ao Estadão:
Há uma distinção fundamental entre atos preparatórios, que em regra não são puníveis, e atos executórios, que configuram o início da prática de um crime. Em abstrato, no caso de crimes contra a ordem democrática, como golpe de Estado e abolição violenta do Estado de Direito, onde se traça essa linha?
Eu tenho a impressão de que o atentado ao Estado de Direito, o atentado à democracia, como a própria expressão sugere, exige atos preparatórios. Mas, se houver a execução, obviamente, nós já teremos uma outra ordem jurídica, de modo que a cogitação e a preparação de atos no sentido de tumultuar a cena política, inverter a cena política, já são puníveis.
Com base no que já é público, o relatório da Polícia Federal apresenta indícios suficientes para configurar esses crimes?
Nós vimos o relatório da Polícia Federal, vocês todos leram, e conhecemos os dados que falam em uma articulação, em uma coordenação, numa preparação muito intensa, proximidade, inclusive, de execução. E vamos ver o que a Procuradoria considerou em relação a esses informes.
O relator da OEA para Liberdade de Expressão afirmou que os relatórios produzidos por alguns parlamentares sobre decisões do STF são ‘impressionantes’. Durante sua visita ao Brasil, ele também se encontrou com Bolsonaro, que fez duras críticas à atuação do ministro Moraes e da Corte, alegando, entre outros pontos, perseguição política. O senhor teme que, no cenário internacional, possa haver uma percepção equivocada sobre a conduta do Supremo nesses casos?
Não vejo essa possibilidade. Todos sabem que vivemos num ambiente da mais ampla liberdade de expressão. O que se discute é como ter algum tipo de controle e responsabilidade das redes sociais. Não é um debate que existe apenas no Brasil; ele existe nos Estados Unidos, ele existe na Europa. O que fazer para que as big techs tenham algum tipo de responsabilidade? E esse é um jogo de tentativa e erro. Não acho que haja nenhum comprometimento da liberdade de expressão no Brasil. Certamente, todos nós gozamos da mais ampla liberdade de expressão, sejam setores de situação, sejam setores mais ou menos neutros, sejam setores de oposição.
Mas o ex-presidente fez críticas a Moraes, falando que haveria uma espécie de perseguição política. O senhor não teme que essa versão seja ‘comprada’ internacionalmente?
Não vejo, não vejo. Até porque isso não existe. A rigor, o presidente foi eleito, disputou uma segunda eleição, a reeleição, e perdeu dentro de um ambiente absolutamente democrático. Seu partido fez uma grande bancada no Congresso Nacional, no Senado e na Câmara, valendo-se de todos os meios e modos disponíveis. Portanto, não me parece crível que alguma autoridade internacional acredite que, no Brasil, há um modelo autoritário, um autoritarismo judicial ou mesmo uma ditadura judicial.
Nesta semana, o ex-presidente declarou que já há votos suficientes para aprovar o projeto de anistia, que beneficiaria tanto a ele quanto os envolvidos nos atos de 8 de janeiro. Como o senhor avalia essa iniciativa, que pode ser aprovada pelo Congresso?
Entendo o debate como um debate político. Não vejo nenhuma perspectiva disto frutificar. Em alguns casos, inclusive, são crimes que sequer poderiam ser contemplados por anistia. São crimes muito próximos do terrorismo, contra o próprio Estado de Direito, e não deveriam ser contemplados por anistia.
Não vejo condições para que esse debate prossiga na vida jurídica, mas entendo a perspectiva política, a ideia de falar-se em exagero judicial, de tentar minimizar os fatos do 8 de janeiro. Nós não podemos nunca esquecer esses fatos e seus contextos.
No dia 12 de dezembro, nós tivemos aquelas manifestações em Brasília, carros queimados. Naqueles dias, nós tivemos o episódio do aeroporto em Brasília, em que um caminhão-tanque com gasolina carregava também bombas. Nós tivemos esses assentamentos em frente a quartéis. Você sabe tanto quanto eu que não pode haver liberdade de reunião em frente a quartéis, como não pode haver liberdade de reunião em frente a hospitais, por razões diferentes.
Essas pessoas ficaram assentadas desde novembro até 8 de janeiro em frente a quartéis e depois desceram para tomar a Praça dos Três Poderes. Não são fatos desconexos; tudo isso guarda uma conexão.
E agora temos esse debate sobre a própria articulação do golpe, minutas do golpe, estado de defesa, discussões a propósito de GLO [Garantia da lei e da ordem]. Tudo isso está num contexto mais amplo e é preciso vê-lo dessa maneira e não fazer separação ou fatiamento desses fatos.
O ministro da Defesa, José Múcio, defendeu recentemente a necessidade de diferenciar o nível de participação dos envolvidos nos atos de 8 de janeiro, sugerindo que a soltura de pessoas com participação mínima poderia contribuir para a pacificação do país. Como o senhor avalia essa declaração? O STF deve considerar esse fator na dosimetria das penas, ou há o risco de se criar um precedente de leniência em crimes contra a ordem democrática?
Não vou, obviamente, polemizar com o ministro da Defesa. Certamente, ele tem a sua perspectiva a partir do locus de sua fala, mas devo dizer que parte das Forças Armadas tem grande responsabilidade nesse episódio, porque foram eles que toleraram a permanência dessas pessoas em frente aos quartéis desde o dia 1º de novembro.
Foram eles que deram assentimento, forneceram luz, forneceram água para essas pessoas. Vejam, bens que são públicos. Quando todos nós sabemos que não se deve fazer manifestação em frente ao quartel. Até porque o óbvio é que, em qualquer momento, precisa-se ter liberdade de mobilidade naquela área e naquele território.
Carros saem e entram, os portões abrem e fecham. Não faz sentido ter multidão em frente a quartel, muito menos pedindo golpe.
O protagonismo do STF também gera tensões na relação entre os Poderes e reações no Congresso. Atualmente, tramitam propostas que buscam limitar os poderes da Corte e de seus ministros, como a PEC da Blindagem e a PEC que permitiria ao Congresso suspender decisões do STF, além de criar novas hipóteses de crime de responsabilidade para os magistrados. Como o senhor avalia essas iniciativas?
Com tranquilidade, o debate parlamentar é absolutamente livre. Se houver alguma medida que, de alguma forma, restrinja a independência do Judiciário ou a independência do Supremo Tribunal Federal, muito provavelmente essa questão será submetida ao próprio Supremo Tribunal Federal, que a apreciará.
Há uma crítica recorrente do Executivo e do Legislativo de que o Supremo vai além de seu papel ao legislar sobre determinados temas e detalhar políticas públicas ao decretar omissões inconstitucionais. Um exemplo recente é a ADPF 635, que restringiu operações policiais em comunidades do Rio e gerou reações de parlamentares e do governo estadual. Como o senhor avalia essas críticas?
Eu acho que o Tribunal aqui está atuando para moderar ações talvez excessivas por parte da própria polícia, no caso, a polícia do Rio de Janeiro.
Mas eu até tive oportunidade, no meu primeiro pronunciamento agora, no plenário, no julgamento de mérito, de dizer que, a rigor, o verdadeiro estado de coisa inconstitucional é ter território ocupado. O Estado não pode tolerar isso, e é preciso que haja medidas. A Polícia Federal dispõe de poderes, inclusive, para investigar esses grupos e talvez fazer cessar esse verdadeiro estado de coisa inconstitucional.
Portanto, não é culpa do Supremo a instalação de bandos em territórios, seja de narcotraficantes, seja de milicianos. Mas isso precisa cessar. É preciso dizer de maneira muito clara aos governos estaduais que isso é intolerável e que isso precisa ser encerrado.
Mas, de uma maneira geral, o senhor acha que não são válidas as críticas do Executivo e do Legislativo, que, em certas ocasiões, o Supremo…
Eu acho que Legislativo e Executivo devem fazer mais exatamente para evitar a instalação desse estado de coisa inconstitucional sobre o qual eu falei.
Não pode haver, em todo o território nacional, outro poder soberano que não o Estado brasileiro. Não faz sentido que, em determinados lugares no Rio de Janeiro, haja o domínio da milícia, em outro lugar, haja o domínio do narcotráfico e, assim por diante, a polícia, às vezes, intervenha para evitar o conflito entre facções.
É preciso que isso seja, de fato, dito de maneira muito clara e que a política, toda ela, não dependa desses grupos, mas abomine esse fato.
Muitas análises sobre o protagonismo do STF na política nacional enfatizam fatores exógenos, como o desenho constitucional e as dinâmicas políticas ao redor da Corte, tratando-o como um processo independente do comportamento dos ministros. No entanto, os poderes do Supremo permanecem os mesmos desde 1988, e houve momentos em que a instituição adotou uma postura mais autocontida. Os ministros não deveriam exercer esses poderes de forma mais comedida para reforçar a legitimidade da instituição?
Primeiro, que eu não compartilho dessa visão de que haja uma expansão dos poderes do tribunal. De fato, a competência do tribunal é muito ampla e, na falha que haja de funcionamento ou disfuncionalidade nas relações entre os Poderes, o próprio tribunal pode atuar. Você mesmo mencionou uma competência que não é comum às Cortes Constitucionais, que é o controle das omissões inconstitucionais. O tribunal exerce essa competência.
Portanto, não me parece que haja nenhuma expansão, muito menos expansionismo, por parte do tribunal.
Com informações de entrevista ao jornal Estado de São Paulo, Estadão
Fonte: https://agendadopoder.com.br/gilmar-mendes-ve-proximidade-de-execucao-em-tentativa-de-golpe-e-critica-exercito-por-8-de-janeiro/