24 de novembro de 2024
Haddad reconhece dificuldades do governo na comunicação digital e garante
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Durante a longa entrevista em seu gabinete no Ministério da Economia, em Brasília, feita pela jornalista Monica Bergamo, da Folha de S. Paulo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirma que o governo busca uma “saída democrática” para lidar com o desafio da propagação de discursos de ódio nas redes sociais, em contraste com abordagens autoritárias adotadas por outros países, que simplesmente “proíbem e acabam”.

Ao fazer uma análise do primeiro ano do terceiro mandato de Lula, ele também menciona que a exploração da religião na política pelos opositores e o enfraquecimento do Estado laico representam desafios novos e significativos para o presidente e seus apoiadores. Haddad ressalta que “Lula é um produto da modernidade” e nunca misturaria sua fé com atividades políticas.

Haddad revela ainda que Lula nutria certa mágoa em relação a amigos que o abandonaram em momentos difíceis, mas que esses sentimentos foram gradualmente dissipados nos primeiros meses de seu governo. Ele observa uma mudança no ânimo de Lula, percebendo-o mais alinhado com os governos anteriores do que no início de sua atual gestão.

Lula tem já um ano e quatro meses na Presidência, sob o slogan oficial “União e Reconstrução”, o que diz algo sobre o presente, mas não aponta para o futuro. Para onde caminha o governo Lula? Ou sua missão, como disse o ex-presidente do Uruguai José Mujica a Gabriel Boric quando ele foi eleito presidente do Chile, é apenas a de segurar o barranco para ele não despencar? O que é pouco, apesar de exigir um grande esforço?
O presidente Lula está reconstruindo muita coisa que estava em decomposição. Há um esforço de reorganização do Estado e de políticas públicas que é notável. O Ministério do Meio Ambiente estava liquidado, o da Saúde era negacionista, a Ciência e Tecnologia vivia um descalabro. Há também as instituições. Eu não quero viver em uma ditadura.

Talvez tudo isso que estamos fazendo não apareça em um primeiro momento. Mas não é pouco.
Não houve propriamente um governo Bolsonaro que nos antecedeu. Ele terceirizou para o Legislativo e não governou.

A reforma da Previdência foi feita à revelia dele. Falavam coisas fantasiosas, que ela geraria uma economia de R$ 1 trilhão. Que mais R$ 1 trilhão seriam arrecadados em privatizações. Que haveria ajuste fiscal no primeiro ano de governo. E o que aconteceu? Nada. O déficit em 2020 foi de quase R$ 1 trilhão.

Conversávamos no país muito sobre bobagens. Vacina versus jacaré, imposto do jetski. Eu estou discutindo uma reforma tributária depois de 40 anos [de expectativas].

Qual é o termo de comparação? Pelo amor de Deus.

O governo tem problema de comunicação que se repete. É político e de coordenação? 
Eu concordo com os críticos que dizem que nós ainda estamos muito analógicos nas redes sociais. O combate às fake news é um problema ainda para nós. Eu às vezes recebo relatório de [publicações em] redes. O grau de desinformação é muito grande.

O Lula não viveu isso nos oito anos de seus governos anteriores. Ele próprio fala: “Nós não temos engajamento? Mas como é que é isso?”.

[Explicam ao presidente] “É que isso é patrocinado, tem dinheiro de fora, tem dinheiro daqui, tem dinheiro de lá”.

O mundo inteiro está enfrentando esse fenômeno. O ministro de Finanças da França, Buno Le Maire, me disse que a extrema direita lá está crescendo nas redes sociais.

Não é por acaso que os extremistas defendem a possibilidade de disseminação de fake news sob o manto da liberdade de expressão. Eu vejo muita loucura nas redes.

E o governo está perdido, sem saber como lidar com isso?
Nós queremos uma saída democrática para o problema. Não queremos uma saída autoritária. Tem países que adotam saídas autoritárias. Proíbe [o funcionamento das plataformas] e acabou.

Nós queremos proteger o indivíduo de uma avalanche de desinformação que ofende a sua reputação e contra a qual ele não tem proteção.

Nós temos também que calibrar melhor a nossa comunicação, os nossos discursos. Precisamos aprender a lidar com essa ascensão da extrema direita.

Será um ciclo longo, um inverno longo. A extrema direita não é episódica. Ela pode até durar pouco no curso da História. Mas às custas de muita destruição às vezes. A Segunda Guerra Mundial é fruto da ascensão da extrema direita. E foram 60 milhões de vidas perdidas.

E qual é a dificuldade para fazer esse enfrentamento?
Quando você tem um partido de centro-esquerda de um lado e um de centro-direita de outro, há paridade de armas.

Com a extrema direita não há paridade. Essa que é a verdade. Não tem proteção. Ela usa ferramentas que não são da nossa cultura.

O senhor convive intensamente com o presidente há 20 anos. Qual é a diferença entre o Lula de 2002 e o de 2024? Ele está menos entusiasmado, com menos paciência de conversar?
No começo deste governo, eu o sentia mais ansioso por entregas. Porque uma coisa é um jovem de 50 e poucos anos que chega pela primeira vez à Presidência. Outra coisa é um senhor que já viveu tudo o que ele viveu.

Não vai ser fácil arrumar tudo o que precisa ser arrumado [no país]. Dá trabalho mesmo, vai levar tempo.

Mas penso que essa ansiedade dele foi refluindo ao longo dos meses. E Lula hoje está mais na vibração dos governos anteriores do que estava no começo.

Outra coisa que eu sentia, e que não vejo mais, é que ele tinha uma certa mágoa, sabe? Dos amigos que sumiram no momento difícil. Mas isso também foi se diluindo. Ele foi reconectando, voltando a conversar com as pessoas.

Às vezes as pessoas exigem do Lula uma coisa que ninguém está disposto a oferecer por si próprio, entendeu? Uma inumanidade, como se ele fosse… ele é um ser humano. Ele sofreu, passou agruras e enfrentou desafios que pouca gente teria condições de superar.

Pô, o cara é um gigante. Passou o que passou, disputou e ganhou a eleição, naquele aperto, fez a transição.

E a questão de ele não dialogar mais com tanta gente com a mesma frequência? Lula está mais fechado, mais caseiro, também por causa de sua nova fase pessoal, de recém-casado?
Sinceramente, eu acredito que não. E eu acredito piamente que a Janja faz bem para o Lula, quer o bem do Lula, quer participar, como qualquer pessoa no lugar dela gostaria [de participar]. Respeita o trabalho dos ministros. Os dois estão sempre juntos, bem. É um clima bom.

O governo Lula, afinal, é de centro ou de centro-direita, como disse o ex-ministro José Dirceu?
O PT é um partido de centro-esquerda, não tem dúvida. Mas fez em 2022 uma aliança com a direita para ganhar a eleição e governar. Então eu diria que ele está no ponto médio entre essas duas forças.

É uma coalizão para evitar o mal maior. Enquanto a extrema direita estiver com essa força e com esses instrumentos de ataque, essa aliança será uma proteção para o país. Isso ocorre também em Portugal, na Espanha, mundo afora.

A repolarização em torno de perspectivas mais saudáveis e democráticas exigirá, antes, o refluxo da extrema direita no Brasil e no mundo.

E eu lamento dizer que considero o Bolsonaro uma boa tradução do que muita gente pensa no Brasil. Eu lamento porque me choca que isso [organização da extrema direita] tenha se dado em torno dessa figura que tem uma mentalidade muito arcaica, quase medieval.

O fenômeno é mundial, mas aqui tem essa idiossincrasia. Eu lamento. Porque até a extrema direita no mundo come de garfo e faca às vezes.

Vocês lançaram um pacote de crédito voltado ao pequeno empreendedor, e Lula tem sido aconselhado a falar mais com o segmento evangélico para recuperar terreno nesse público. Como isso vai acontecer?
O Estado laico está perdendo terreno no mundo inteiro para o uso malicioso da religião no embate político.

A separação clássica e recomendável da teoria democrática, de não se usar a religião em proveito próprio, está se perdendo.É um elemento que faz diferença.

Foi o Lula que sancionou a Lei da Liberdade Religiosa. Ele recebe [líderes religiosos], eu recebo.

O presidente é um homem religioso. Mas tem uma cultura democrática. Ele não bota a religião no palanque. Ele acha de mau gosto, e péssimo do ponto de vista político, usar isso em proveito próprio.

Fé e relação com a espiritualidade são questões de foro pessoal. A partir do momento em que você põe isso num palanque, de forma oportunista, leva as pessoas a um tipo de paixão que não tem aderência à realidade.

Essa família que governou o país [Bolsonaro], pelo amor de Deus, né? Está muito longe de qualquer valor religioso. E, no entanto, usam a torto e a direito esse tipo de coisa.

Esperar que o Lula também faça isso? Ele não vai fazer.

O Lula é um produto da modernidade. Estamos falando de um combate a forças obscurantistas, e o Lula não vai entrar nessa.

Fonte: https://agendadopoder.com.br/haddad-reconhece-dificuldades-do-governo-na-comunicacao-digital-e-garante-que-lula-nao-confunde-fe-com-politica/