
O Brasil convive com anistias desde os primeiros dias de independência. Apenas 11 dias após o “grito do Ipiranga”, dom Pedro 1º, ainda príncipe regente, perdoou todas as “passadas opiniões políticas” para consolidar a separação de Portugal. Desde então, a prática de perdoar opositores e conspiradores se repetiu em diferentes períodos históricos, sobretudo quando envolvia militares.
De acordo com historiadores ouvidos pelo portal UOL, conspirações e tentativas de golpe raramente foram julgadas a fundo no país. Desde a proclamação da República, em 1889, foram pelo menos nove decretos ou leis de anistia destinados a cidadãos que atentaram contra governos. A justificativa sempre foi a mesma: a “pacificação nacional”.
Hoje, esse mesmo argumento volta a ser usado por políticos que defendem anistiar os envolvidos nos ataques de 8 de janeiro de 2023, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro e militares de alta patente.
Generais no banco dos réus
No Supremo Tribunal Federal, oito integrantes do chamado “núcleo 1” respondem por tentativa de golpe. Entre eles, quatro oficiais de alta patente, em uma situação inédita no país: três generais quatro estrelas — Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto — e um almirante, Almir Garnier Santos.
Eles são acusados pela Procuradoria-Geral da República de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. Até hoje, processos dessa natureza envolvendo militares de alto escalão nunca chegaram à Justiça comum.
Bolsonaristas defendem perdão
A pressão por anistia ganhou força em atos recentes. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, defendeu a medida evocando o passado: “Na história do Brasil, sempre tivemos anistia. Foi assim no período colonial, regencial, no Segundo Império, na República. Pedir anistia não é heresia”. Em manifestação pró-Bolsonaro na Avenida Paulista, atacou diretamente o Judiciário: “Ninguém aguenta mais a tirania do ministro Alexandre de Moraes”.
As falas geraram reação imediata no STF. O ministro Gilmar Mendes rebateu afirmando que “o que o Brasil não aguenta mais são as sucessivas tentativas de golpe”. Já Luís Roberto Barroso lembrou a diferença em relação ao regime militar: “Na ditadura, não havia devido processo legal, público e transparente”, frisou.
Anistia antecipada e impunidade
No Congresso, o deputado Sóstenes Cavalcante articula um projeto de anistia ampla, que incluiria até condenações futuras, alcançando nomes como o do deputado Eduardo Bolsonaro.
Para o historiador Daniel Aarão Reis, esse tipo de proposta fortalece a sensação de impunidade. “Anistias antecipadas acabam encorajando propostas golpistas.” Já o professor Murilo Cleto ressalta que a conciliação sempre marcou a democracia brasileira: “A democracia brasileira sempre recorreu à conciliação em momentos delicados”.
Reis, no entanto, adverte que apenas julgamentos não bastam: “O julgamento é um passo importante, mas não suficiente para transformar a realidade”.
A sombra da Lei de 1979
O debate atual também remete à Lei de Anistia de 1979, que marcou o fim da ditadura militar e livrou agentes do regime de responder por crimes de tortura e assassinato, apesar de serem imprescritíveis no direito internacional. O STF discute a possibilidade de rever essa lei, mas bolsonaristas afirmam que ela só beneficiou presos políticos.
Pedro Dallari, que integrou a Comissão Nacional da Verdade, reforça a necessidade de separar os contextos: “Nada do que ocorreu em relação à ditadura está sendo considerado agora. Isso deve ficar claro”.
O historiador Rodrigo Patto Sá Motta lembra que, ao longo do tempo, apenas militares de baixa patente foram punidos — como os tenentistas nos anos 1920 e os participantes da Intentona Comunista de 1935. Já os responsáveis pelo golpe de 1964 jamais enfrentaram responsabilização judicial.
Um julgamento com efeito pedagógico
Apesar da pressão por uma nova anistia, especialistas veem o julgamento dos generais como um marco. Para a historiadora Mariana Joffily, da Universidade do Estado de Santa Catarina, “militares de alta patente sendo julgados abre precedente importantíssimo para que se pense duas vezes antes de atentar contra a democracia”.
Patto reforça que uma eventual condenação teria impacto duradouro: “O golpismo autoritário não ficará mais impune”. E conclui que o processo pode encerrar um ciclo histórico: “O julgamento pode representar um ponto final na longa história de golpismo militar no Brasil, pelo efeito pedagógico que carrega”.
Fonte: https://agendadopoder.com.br/julgamento-de-generais-de-alta-patente-no-stf-desafia-tradicao-de-anistias-a-militares-no-brasil/