
Em mais um episódio da escalada de tensão política que paralisou o Congresso nesta semana, a deputada federal Júlia Zanatta (PL-SC) levou sua filha de apenas quatro meses ao plenário da Câmara dos Deputados e posicionou a criança na cadeira da presidência da Casa. O ato foi visto por alguns parlamentares como uma tentativa de dificultar qualquer ação da Mesa Diretora para retomar os trabalhos legislativos e Zanatta foi acusada de usar a própria filha como “escudo”.
Nas redes sociais, a parlamentar chegou a publicar um texto defendendo sua decisão e contestando os críticos. “Eles querem é inviabilizar o exercício profissional de uma mulher usando SIM uma criança como escudo”, escreveu.
Com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completando 35 anos neste mês de agosto, a atitude da deputada levanta uma questão: é crime levar uma criança a um ato de protesto? Especialistas ouvidos pelo Agenda do Poder têm diferentes opiniões sobre o caso. Diogo Flora, advogado criminal e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), diz que o ECA não pode ser usado de modo cartesiano.
“É uma interpretação muito extensiva defender que a ideia de utilizar a filha como ‘escudo’ signifique literalmente colocar a criança como uma barreira física para se proteger de eventual ação policial. Um ‘escudo’ pode significar uma defesa moral, uma defesa ideológica, uma defesa de ideias políticas, que me parece a interpretação mais alinhada com o que de fato aconteceu”, disse o especialista. E completou:
“Mesmo que ela tivesse intenção de usar a filha literalmente como um escudo, isso não aconteceu, e não podemos punir crimes imaginários, caso contrário estaríamos todos condenados”.
O advogado Patrick Berriel, especialista em Direito Penal e presidente da Comissão de Júri da OAB/RJ, considera que a deputada pode sim ter incorrido em um delito, “especificamente, da conduta de expor ao perigo a vida ou a saúde de pessoa sob autoridade, guarda ou vigilância do agente”. Para ele, o Conselho Tutelar poderá intimar Zanatta para que ela esclareça o fato de ter levado um bebê para uma manifestação política.
Para Diogo Flora, embora o artigo 5º do ECA prescreva que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, é preciso ponderar que a questão permanece no âmbito da interpretação.
“É possível argumentar que houve uma exploração ou violência sobre a criança, ao ser levada para um ato político e ter sua imagem associada à defesa de uma causa que lhe é alheia. No entanto, também é possível argumentar que, enquanto um bebê que está sendo alimentado, deixá-la em casa seria privá-la de sua alimentação, que é o leite materno”, disse.
Daniell Roriz, advogado, com atuação especializada em Direito Educacional e membro efetivo da Associação Brasileira de Direito Educacional (Abrade), diz que tanto o ECA quanto o Código Penal preveem que o comportamento de Zanatta possa configurar um crime. Segundo o especialista, seria possível vislumbrar que a criança foi exposta a um constrangimento ao ser “instrumentalizada como um meio de manifestação política”.
Para ele, as autoridades precisam verificar se a parlamentar, ao usar a filha como um ato de protesto, também não incorreu no crime de maus-tratos, submetendo a criança a um sofrimento emocional e psicológico.
O deputado Reimont (PT-RJ) acionou formalmente o Conselho Tutelar para avaliar o caso. “Colocar bebês como escudo em cima da mesa da presidência da Câmara é cruzar a linha da decência. Isso não é resistência política, é espetáculo grotesco”, afirmou o petista. Sobre a atuação do órgão acionado, Daniell Roriz complementa:
“O Próprio Conselho Tutelar pode, entendendo que houve algum tipo de violação ao direito da criança e do adolescente, viabilizar ou ao menos opinar ao Ministério Público pela aplicação de alguma penalidade de multa ou uma restrição de direitos”.
O que querem os bolsonaristas
A mobilização dos parlamentares bolsonaristas teve início após a decretação da prisão domiciliar de Jair Bolsonaro pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Desde então, deputados aliados do ex-presidente passaram a ocupar as mesas diretoras da Câmara e do Senado, exigindo a votação de projetos de anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos de 8/1 e o impeachment de Moraes.
Outro ponto da pauta bolsonarista é a mudança nas regras do foro privilegiado. Atualmente, autoridades como o presidente da República, parlamentares e ministros são julgadas pelo Supremo quando cometem crimes relacionados ao cargo. O grupo propôs que processos contra autoridades, como o próprio Bolsonaro, passem a tramitar primeiro em Tribunais Regionais Federais (TRFs) e, depois, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), antes de chegar ao STF, o que significaria um caminho processual mais longo e menos concentrado na Corte.
Sessão retomada sob tensão e segurança reforçada
Após dois dias de bloqueio físico do plenário, o presidente da Câmara, Hugo Motta, conseguiu reassumir a cadeira da presidência e abriu oficialmente a sessão na noite de quarta-feira (6). A retomada foi cercada por tensão e resistências. Mesmo após pedidos reiterados para desocupação, parlamentares da oposição relutaram em deixar a mesa diretora.
A sessão só aconteceu após articulação com Centrão e o apoio do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), que também anunciou a reabertura das sessões na Casa Alta, igualmente impactada pelos protestos bolsonaristas.
Segundo aliados de Motta, a retomada só foi possível após o endurecimento das regras internas, incluindo ameaças de suspensão de mandato para quem tentasse impedir os trabalhos legislativos.
O plenário do Senado só foi liberado na quinta-feira (7), depois que a oposição conseguiu o número mínimo de assinaturas para pedir o impeachment de Alexandre de Moraes. Em resposta à escalada de tensões, Alcolumbre decidiu que a sessão seria realizada de forma remota, evitando confronto direto na Casa.
Fonte: https://agendadopoder.com.br/julia-zanatta-cometeu-crime-ao-levar-crianca-para-protesto-bolsonarista-no-plenario-especialistas-respondem/