29 de outubro de 2025
o que Moraes tem a ver com o Homem-Aranha?
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Um dos memes mais famosos da história da internet é o do Homem-Aranha: são dois, às vezes três Homens-Aranha desenhados em estilo vintage, um apontando para o outro, como se culpando uns aos outros por algum crime ou pecado, ou acusando uns aos outros de serem impostores e sabotadores. Como a vida imita arte, estamos assistindo nesse exato momento um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) viver o mesmo drama que o Peter Parker do meme, e este ministro é ninguém mais, ninguém menos, do que Alexandre de Moraes.

De fato, Moraes julga ex-assessor de Moraes que acusa Moraes de ordenar e praticar ilegalidades no gabinete de Moraes. Parece piada. Ou uma daquelas frases eternas de Dilma Rousseff — algo entre “estocar vento” e “saudação à mandioca”. Mas não é. É a realidade nua e crua da Justiça brasileira em 2024: Alexandre de Moraes julga Eduardo Tagliaferro, seu ex-assessor no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por ter acusado o próprio ministro de cometer irregularidades, ilegalidades e até crimes. É o tipo de notícia que nos faz sentir saudades de quando a loucura no poder era apenas verbal, eram os desvarios de Dilma. Hoje, a loucura vem por escrito — e com timbre do Supremo.

Repita comigo: Moraes julga ex-assessor de Moraes que acusa Moraes de ordenar e praticar ilegalidades no gabinete de Moraes. Assim, Moraes, ao ser informado das denúncias do antigo assessor de Moraes, vai investigar as acusações contra Moraes, e decidir se o que foi dito contra Moraes é procedente ou não. É ou não para nos fazer sentir que precisamos de uma camisa de força? Soa absurdo? É. Mas é também literal. Eduardo Tagliaferro, ex-assessor de Moraes no TSE, será julgado no próprio Supremo, pelo próprio Moraes, por supostamente ter vazado informações sobre irregularidades cometidas… por Moraes. É ou não é o meme do Homem-Aranha?

A história é simples e escandalosa. Tagliaferro trabalhava na Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE (AEED/TSE), um órgão criado para “combater a desinformação”, subordinado diretamente ao então presidente da Corte, Alexandre de Moraes. Segundo o próprio Tagliaferro, ele começou a receber ordens — vindas do gabinete de Moraes no STF — para utilizar a estrutura do TSE em investigações contra pessoas e veículos identificados com a direita política. Era o uso de um órgão eleitoral para perseguir adversários ideológicos, fora do período eleitoral e para alimentar apurações criminais que sequer ocorriam no TSE, mas sim no Supremo.

É ele quem se diz ofendido, quem determina a abertura do inquérito, quem conduz as diligências e, agora, quem julgará o réu que o acusou

Os pedidos, conforme relatado, eram diretos: buscar “discursos antidemocráticos”, identificar perfis “suspeitos”, patrulhar as redes sociais para identificar “bolsonaristas” e até apontar meios de desmonetizar veículos de imprensa críticos ao ministro. Um caso em especial causou um escândalo: segundo Tagliaferro, quando informou ao gabinete de Moraes que não havia encontrado irregularidades na Revista Oeste, mas apenas jornalismo, ouviu de volta uma frase surreal — “use a criatividade”. Em outras palavras, invente um motivo para censurar.

Diante disso, Tagliaferro denunciou as ordens ilegais do chefe e se tornou o que o direito internacional chama de whistleblower — um denunciante que expõe abusos de poder e, por isso, é protegido pela lei brasileira e por convenções e precedentes internacionais. O resultado? A lei foi ignorada e ele foi acusado de crime. Virou alvo de um inquérito conduzido… pelo próprio Moraes. E adivinha quem é o relator da ação penal contra o ex-assessor de Moraes? Adivinhou, de novo, o próprio Moraes.

A lógica é de um tribunal de exceção. O ministro se coloca como juiz, parte e vítima. É ele quem se diz ofendido, quem determina a abertura do inquérito, quem conduz as diligências e, agora, quem julgará o réu que o acusou. É o colapso do princípio da imparcialidade judicial, aquele que, segundo a Constituição, é a alma de qualquer processo justo. Além disso, é o fim das salvaguardas contra o conflito de interesses, afinal, Moraes é interessado no caso. 

Moraes é interessado, primeiro, porque o caso lhe dá oportunidade de vingança. Segundo, porque a punição exemplar do whistleblower é importante para dissuadir outras pessoas que cogitem fazer o mesmo. Por fim, e mais importante, o que está em jogo no julgamento é, em última análise, as suas próprias ilegalidades. Se Moraes agiu ilegalmente, Tagliaferro agiu legalmente ao reportar crimes. Assim, a tese de defesa central de Tagliaferro consiste nas ilegalidades de Moraes. Imagina se isso é submetido a outro juiz que… ouse reconhecer que Moraes cometeu crimes? 

Para piorar, a Procuradoria-Geral da República (PGR), em vez de investigar as denúncias de abuso feitas por Tagliaferro, preferiu acusá-lo. A denúncia será apreciada pelo STF no próximo dia 7 de novembro. Tudo dentro da mais perfeita “normalidade democrática”, como diriam os ministros do próprio tribunal, ou a imprensa militante. O caso escancara o que se tornou o sistema de justiça brasileiro: um circuito fechado de poder, em que quem denuncia abusos é punido, e quem os pratica, julga. 

A independência judicial virou sinônimo de impunidade judicial. E o que deveria ser um tribunal constitucional age hoje como parte interessada na própria impunidade e na narrativa política. Imagine você ser julgado por quem o acusa. Imagine o juiz que vai decidir seu destino ser também o alvo das suas denúncias. É como entregar sua defesa para o carrasco. E o mais grave: isso ocorre na mais alta Corte do país, aquela que deveria ser o último bastião da legalidade, o exemplo de devido processo legal.

Moraes não apenas viola o princípio da imparcialidade. Viola também o da moralidade administrativa, da legalidade e do devido processo legal. Não há, em nenhum sistema jurídico civilizado, precedente que permita a um magistrado julgar um caso no qual tenha interesse pessoal, direto ou indireto. Fazê-lo no Brasil caracteriza crime de responsabilidade punível com impeachment. E, ainda assim, isso acontece sem escândalo institucional, sem reação da OAB, sem constrangimento do Senado — que tem o dever constitucional de fiscalizar os ministros do Supremo, e sem repúdio da imprensa. 

O caso Tagliaferro é mais do que um episódio de abuso: é o espelho do que o STF se tornou. Um tribunal que julga seus críticos, censura jornalistas, criminaliza opiniões e agora persegue quem ousa denunciar seus próprios excessos. Quando a Constituição foi escrita, ninguém imaginou que seria preciso prever que um juiz não pode julgar a si mesmo. Isso era óbvio demais. Mas eu me pergunto: se fosse previsto, seria respeitado? Ainda há algum limite para o que um ministro do STF pode fazer?

Uma das frases mais famosas da história do Homem-Aranha foi dita pelo Tio Ben para o Peter Parker: com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. A teoria americana traduziu isso na forma de “checked power”, de “checks and balances”, de freios e contrapesos, na forma de tripartição de poderes. Ao abuso deve corresponder a responsabilização. Quando esta não acontece, o poder fica ilimitado para abusar até o ponto em que um juiz se julga autorizado a julgar quem o denuncia. Como pode tudo, Moraes adaptou a frase do Tio Ben para o seu próprio universo: com grandes poderes vêm… mais e mais poderes… e você faz o que quiser fazer.

Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/brasil/moraes-tem-homem-aranha/