
O Itamaraty monitorou mais de 17 mil brasileiros e estrangeiros no exterior durante a ditadura militar através de uma divisão clandestina de arapongagem, o Centro de Informações do Exterior (Ciex). É o que revelam 8.330 telegramas secretos que orientaram o rastreamento de opositores e subsidiaram regimes autoritários na América Latina entre 1966 e 1986.
Os números, inéditos, foram compilados por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas (FGV), da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto Norueguês de Relações Internacionais e da consultoria francesa Ipsos.
Em um esforço concentrado de 14 meses, o grupo reuniu num amplo banco de dados o conteúdo das correspondências, tornadas públicas no fim de 2024 mas jamais exploradas em sua integralidade. Batizado de Latin American Transnational Surveillance, ou Lats, o acervo está disponível para consulta (saiba como ter acesso ao final da reportagem).
O conjunto de documentos desmistifica a imagem que durante décadas se cultivou do Itamaraty como uma espécie de ilha de civilidade que atravessou a ditadura imune às ilegalidades e brutalidades cometidas pelo regime. Talvez por isso a existência do Ciex jamais tenha sido admitida formalmente pelo Ministério das Relações Exteriores. Até hoje a portaria que o criou continua secreta.
O trabalho dos acadêmicos Matias Spektor, Marcos Fernandes, Lucas Paes, João Dalla Polla, Vitor Sion e Marcos Ross descortinou detalhes de episódios perdidos no tempo e informações surpreendentes, como a de que apenas 30% dos 17 mil monitorados eram brasileiros.
Diplomatas e arapongas espionaram amigos, conhecidos, colegas de trabalho e demais integrantes das redes afetivas dos brasileiros em países como Uruguai, Chile, Argentina e Portugal.
Nos documentos, que eram transmitidos por um canal particular e sigiloso de telegramas ao qual o resto da diplomacia não tinha acesso, os exilados eram tratados como “subversivos”, “elementos”, “meliantes”, “marginados” ou “revolucionários”.
“A prioridade do Ciex era acompanhar de perto seus laços e movimentos e identificar apoios vindos de fora à luta armada no Brasil“, afirma Matias Spektor, professor de Relações Internacionais da FGV. “Havia uma obsessão por mapear quem falava com quem, quem viajava pra onde, e quem recebia dinheiro, armas ou treinamento militar de terceiros”.
De divergências políticas a casos extraconjugais
A garimpagem no banco de dados mostra como o regime brasileiro conseguiu infiltrar espiões em residências compartilhadas por exilados – o que era comum na época, para atenuar o custo de vida no exterior e para a autoproteção. A infiltração era a forma mais eficiente de colher informações, já que as redes de exilados eram bem coesas e raramente se comunicavam entre si justamente para driblar a vigilância das ditaduras.
Os arapongas chegaram bem próximo de importantes lideranças no exílio – como ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-deputado cassado da Guanabara Leonel Brizola, o presidente deposto João Goulart, seu cunhado, e o ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, articuladores da oposição à ditadura. Mas também alcançaram militantes na clandestinidade e milhares de brasileiros com menor grau de influência política que deixaram o Brasil por se oporem ao regime instaurado pelo golpe de 1964.
No caso de Brizola, o mais vigiado de todos, fica claro que havia um ou mais infiltrados, já que as mensagens escritas de 1966 até pelo menos 1972 traziam informações que não era possível obter de outra forma – como relatos detalhados de reuniões e as divergências políticas entre os brasileiros que viviam no prédio de Brizola no balneário de Atlántida, no Uruguai, visitas, financiamento e até relações extraconjugais entre alguns deles.
Num boletim de setembro de 1966, por exemplo, os agentes do Ciex escreveram que Brizola recebeu um brasileiro identificado como Conturcci, com quem discutiu a articulação de candidaturas contra a ditadura nas eleições estaduais de 1966, quando ainda havia voto direto para o Congresso, fechado pela ditadura dois anos depois.
“Brizola teria apoiado a grande maioria e deu instruções ao ‘correio’ no sentido de que dois dos escolhidos – se eleitos – viessem sem demora a Montevidéu para conversar com ele (Brizola). Entre os nomes escolhidos por Brizola figura o do cidadão Hamilton Chaves”, diz o telegrama.
Em outro, de 1970, comentam: “Benedita Savi seria amante de Carlos Figueiredo de Sá, subversivo brasileiro refugiado no Uruguai e que ainda, ao que parece, permanece no Uruguai, onde veio trazendo [sic] importante soma de dinheiro em cruzeiros”.
Em uma correspondência de 1966, o Ciex informou que o ex-governador vinha recebendo ajuda financeira do industrial Fernando Gasparian – que era amigo do ex-deputado Rubens Paiva e é retratado no filme Ainda Estou Aqui. Gasparian, que aparece no filme tentando convencer Rubens a sair do país, passou dois anos no Reino Unido e só voltou ao Brasil em 1972.
O material também indica que a atuação do Ciex se intensificou conforme a ditadura endurecia. O ano com mais relatórios mensais (97) foi 1968, quando o regime editou o Ato Institucional Nº 5, o AI-5. O Congresso e as Assembleias Legislativas foram fechados, a censura prévia foi instaurada e garantias como o direito ao habeas corpus em crimes de motivação política foram derrubadas
Nessa época, a linguagem dos telegramas é mais parecida com a dos arapongas do SNI, ao passo que a partir de 1979, com a Lei da Anistia e o retorno de vários exilados, a divisão foi diminuindo suas atividades e passando a produzir boletins mais analíticos e informações de conjuntura. O Ciex só viria a ser extinto em 1986, já sob o governo civil de José Sarney.
Os pesquisadores também concluíram que o monitoramento dos estrangeiros realizado pelo Ciex já garantia uma sólida rede de cooperação entre ditaduras da América Latina muitos anos antes da instauração da Operação Condor – como foi chamada a articulação formal entre as ditaduras de direita da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai para reprimir movimentos de resistência, firmada em 1975 com o apoio dos Estados Unidos.
O Ciex, porém, não atuou apenas na América Latina. Os documentos mostram que a vigilância ocorreu na Argélia, onde Miguel Arraes se exilou durante um período, e na Europa, em países como Portugal, Itália e França, que abrigavam muitos brasileiros.
Os telegramas registram, por exemplo, a troca de informações de inteligência entre a ditadura brasileira e outros regimes da região, incluindo a repatriação forçada de cidadãos asilados e dados estratégicos sobre a atuação dos chamados “banidos” por Brasília. Até parlamentares estrangeiros que davam apoio aos exilados foram monitorados.
“A colaboração passou a ocorrer de forma mais próxima e constante com países que também viraram regimes autoritários, como Uruguai, Argentina e Chile. Há registros de envolvimento brasileiro nas eleições do Uruguai em 1971 e no Chile já é amplamente discutido como o Brasil atuou no golpe de 1973. Mesmo antes disso, esses países já estavam cooperando para trocar informações sobre seus opositores no exterior”, explica o pesquisador independente Vitor Sion, um dos autores do levantamento.
Sobre a base de dados
A base de dados Monitoramento Autoritário Transnacional na América Latina (Lats, do inglês Latin American Transnational Surveillance Database) sistematiza as informações contidas nos relatórios do CIEX entre 1966 e 1986. A base inclui informações anonimizadas de aproximadamente 17 mil indivíduos monitorados, incluindo gênero, nacionalidade, países de residência e uma classificação quanto ao seu envolvimento na resistência ao regime militar. Além disso, emprega diferentes métodos para estimar as redes de colaboração formadas entre os indivíduos monitorados, com o objetivo de compreender os padrões de repressão da ditadura militar e de resistência a ela no exterior.
Mesmo sendo baseada em documentação pública, a base está anonimizada para evitar a exposição indesejada de vítimas da repressão que não estejam na vida pública. Essa opção se orienta pelas normas de ética em pesquisa acadêmica com dados individuais.
A base completa está disponível aqui.
Já os relatórios completos do CIEX estão disponíveis no site do Arquivo Nacional.
Fonte: https://agendadopoder.com.br/orgao-clandestino-do-itamaraty-monitorou-17-mil-pessoas-na-ditadura-mostram-telegramas-secretos/