
Em meio à polêmica das discussões sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança Pública no Congresso Nacional, uma conta não fecha: enquanto a proposta tira poder principalmente dos estados, mas também dos municípios, no combate à criminalidade, não altera de forma substantiva o financiamento da segurança pública no Brasil.
A PEC foi apresentada neste ano pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, e rechaçada por todos os governadores de oposição e mesmo alguns da situação. A proposta concentra mais poderes nas mãos do governo federal na definição de diretrizes, realização de ações e coordenação de ações entre os entes federados para o combate ao crime organizado.
A questão é que 86% de todos os gastos na área da segurança pública no Brasil são arcados por estados e municípios. Os governos estaduais responderam por 78% dos gastos no último ano, cabendo à União a participação de 14% no financiamento da política e, aos municípios, 8%. É o que revela o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com dados de até o ano passado.
O levantamento mostra também que não é por falta de investimento em si que a sensação de insegurança e o alastramento das facções criminosas Brasil afora só pioram: apenas entre 2023 e 2024, os gastos globais com segurança pública de todas as esferas de governo cresceram 6,1%.
Em 2024, as despesas com segurança pública somaram R$ 153 bilhões, aponta o relatório. “Esse montante, que corresponde à soma dos investimentos realizados pelas três esferas de governo, equivale a aproximadamente 1,3% do PIB. Para fins comparativos, os investimentos em saúde pública — tradicionalmente uma das áreas mais custosas da administração pública — alcançaram cerca de 3,8% do PIB em 2022, segundo o IBGE”, explica a análise que acompanha os números, colocando em perspectiva o montante enorme de recursos investidos na área no ano passado.
De acordo com os dados, a União declarou gastos totais de R$ 21 bilhões em 2024 na área da segurança pública, um aumento de 22% em relação ao ano anterior. Os estados, por sua vez, registraram R$ 118,5 bilhões em despesas na área, com crescimento de 2,4%.
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Municípios ampliam significativamente gastos com segurança pública
Por sua vez, os municípios declararam R$ 13,5 bilhões em gastos com segurança pública, o que representa um aumento de 18,8% no mesmo período. A análise do período de 2021 a 2024 revela que foram justamente os municípios os entes que mais ampliaram proporcionalmente sua participação no financiamento da política de segurança pública: enquanto a União aumentou suas despesas em 36,9% e os estados em 19,8%, os municípios aumentaram em expressivos 58,2% os gastos com segurança pública no mesmo período.
“Não existe um regramento constitucional que defina como deve ser financiada a área de segurança pública. Diferentemente da saúde e da educação, a segurança não dispõe de recursos de impostos vinculados que garantam financiamento perene. Fica, portanto, a reflexão: como garantir o protagonismo da União na coordenação de esforços e integração entre os entes quando sua participação, do ponto de vista do financiamento, é tão baixa?”, questiona a análise do anuário.
Itaquaquecetuba, na região metropolitana de São Paulo, é um exemplo dessa espécie de tendência de municipalização da segurança pública. “Itaquaquecetuba já foi considerada uma das cidades mais violentas do estado de São Paulo e do Brasil: no que se refere aos homicídios, em que o percentual é analisado pelo número de casos a cada 100 mil habitantes, o município sempre ficou entre os 10 mais violentos do estado de São Paulo”, pontua à Gazeta do Povo o prefeito da cidade, Eduardo Boigues (PL).
“Apesar da competência constitucional ser dos estados, sempre entendi que a segunda parte do artigo 144 da Constituição Federal não poderia ser esquecida: que é de responsabilidade de todos a questão da segurança pública”, diz o prefeito, ao justificar a decisão de investir mais pesado na área durante sua gestão.
Como garantir o protagonismo da União na coordenação de esforços e integração quando sua participação, do ponto de vista do financiamento, é tão baixa?”
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025
Em cinco anos, foram pelo menos R$ 80 milhões destinados à Guarda Municipal da cidade paulista de 360 mil habitantes. “Com direito à aquisição de pistolas semi-automáticas para todos guardas, armas de grosso calibre, novas viaturas, motocicletas, drones, radiocomunicadores, ‘muralha eletrônica’, uniformes e coletes balísticos, além de treinamentos constantes, reforma das bases da corporação já existentes e a inauguração de outras”, afirma Boigues, que é delegado da Polícia Civil há mais de 24 anos e chegou a trabalhar em Itaquaquecetuba antes de ser eleito.
Na visão do prefeito, apesar de o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) ter sido aprovado em 2018, via lei ordinária, pouco se avançou no país em relação aos investimentos na área por parte do governo federal — o que teria obrigado investimento dos municípios para conter a insegurança pública em suas localidades.
“Se entrarmos e permanecermos muito tempo nesse ‘empurra-empurra’ da União com o governo do estado, cada vez mais os poderes executivos municipais terão de fazer a vez de quem realmente tem condições financeiras para cuidar da segurança do nosso país, que é a União”, diz Boigues.
Parceria estado-municípios nos gastos com segurança pública
O governo de São Paulo, por exemplo, vem investindo nos últimos anos para armar, além das próprias polícias Civil e Militar, guardas municipais em parcerias com prefeituras de cidades no interior do estado, com mais pistolas e fuzis. A política de distribuir armamento para guardas municipais começou com mais força nos governos de João Doria (de 2019 a 2022), e Rodrigo Garcia (em 2022), ambos do PSDB.
Algumas cidades, como a capital São Paulo, já contavam com guardas municipais armados desde antes disso. Na gestão de Tarcísio de Freitas (Republicanos), a política segue com toda força.
Neste ano, o secretário paulista da Segurança Pública, Guilherme Derrite, já determinou o repasse de pelo menos 1.444 armas da Polícia Civil para as Guardas Civis Metropolitanas (GCM), de acordo com levantamento do jornal O Globo a partir de despachos publicados no Diário Oficial. A Secretaria da Segurança Pública entregou lotes de 12 a 250 pistolas calibre 40 modelo MD6, da Imbel, ou PT100 e PT840, da Taurus, para ao menos 21 cidades paulistas.
A pasta não informou o jornal sobre os equipamentos doados, que seriam 2.146 ao todo. O movimento é chancelado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2021, de que guardas municipais têm direito a portar arma e fazer policiamento ostensivo e prisões em flagrante, independentemente do tamanho da cidade.
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PEC da Segurança amplia poder da União sem repartir conta
“A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública amplia o poder da União, mas sem assumir a conta”, afirma Fernando Capano, professor de Direito Penal e especialista em Segurança Pública, à Gazeta do Povo. “Sem aporte financeiro consistente, a centralização corre o risco de virar apenas concentração de poder, sem resultados concretos na redução da criminalidade.”
Ele afirma que a centralização normativa e de planejamento em Brasília, sem aporte proporcional de recursos, fragiliza a autonomia dos entes locais, que continuarão responsáveis pela execução cotidiana das políticas de segurança pública, mas com menor capacidade de escolha sobre prioridades.
“A história recente mostra que não basta aumentar gastos ou concentrar decisões para reduzir a criminalidade. Se o governo federal quer assumir papel mais relevante, precisa fazê-lo como polo orçamentário, irrigando estados e municípios com recursos consistentes e contínuos, e não apenas editando normas centralizadoras”, afirma Capano.
“A PEC da Segurança, da forma como está, corre o risco de se transformar em mais um instrumento de concentração de poder, sem que o aporte financeiro federal acompanhe a magnitude da tarefa. Isso gera uma equação desequilibrada: mais obrigações e limites para estados e prefeituras, sem a contrapartida de viabilização orçamentária”, avalia Capano.
A União pode e deve, segundo o especialista, participar mais ativamente do enfrentamento à criminalidade, mas essa adesão não pode ser apenas retórica ou protocolar. “Precisa, também, ser financeira, estrutural e cooperativa, sob pena de perpetuarmos o cenário em que estados e cidades sustentam quase sozinhos uma conta que não fecha, enquanto os índices de segurança pública nada ou pouco melhoram”, opina ele.
Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/brasil/pec-da-seguranca-concentra-poder-na-uniao-mas-estados-municipios-bancam-gastos/