Casa da Morte: local clandestino, onde prisioneiros eram torturados e executados — Foto: Divulgação/Prefeitura de Petrópolis
A aprovação pela Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) — em segunda votação, na semana passada — de um projeto de lei que tomba o parque industrial da Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense, reascendeu na professora universitária aposentada Dora Santa Cruz uma ponta de esperança. Afinal, esse é um passo importante no caminho para recuperar as ruínas e transformar o local num centro de memória, para não deixar cair no esquecimento as dores de tantas famílias atravessadas pelos horrores da ditadura militar no Brasil.
Nos fornos da usina, foram incinerados pelo menos 12 corpos de militantes políticos, incluindo o de Fernando Santa Cruz, irmão de Dora, estudante de direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), preso em 1974.
Ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) do Espírito Santo, Cláudio Antônio Guerra confessou ter levado os 12 corpos, a maioria deles da chamada Casa da Morte, em Petrópolis, para Campos. Em junho de 2023, ele foi condenado pela Justiça Federal a sete anos de prisão, em regime semiaberto, por ocultação de cadáver. Como Cambahyba, a Casa da Morte e o prédio do antigo Dops, no Centro da capital fluminense, são outros dois marcos da ditadura que poderão virar memoriais. Uma discussão que ocorre enquanto o Brasil lota os cinemas para assistir a “Ainda Estou Aqui”, filme contando a trajetória da família do ex-deputado federal e engenheiro Rubens Paiva, que o viu ser preso pela polícia da ditadura em 1971 e nunca mais voltar para casa.
— A criação de centros de memória em locais de tortura e extermínio são de suma importância para o resgate da história e para que os tempos sombrios da ditadura militar em nosso país não sejam esquecidos e não voltem a acontecer. As pessoas precisam saber que houve uma ditadura tão ferrenha, que usava métodos nazistas, matando friamente e queimando corpos — diz Dora, reconhecendo ainda haver obstáculos para que esses centros de memória saiam do papel.
Sem respostas
Embora o golpe de 64 já tenha completado 60 anos, o Estado do Rio possui apenas um espaço que remeta a esse passado de barbárie. Em maio último, foi criado, em Barra Mansa, no Sul Fluminense, o Museu do Trabalho e Direitos Humanos, no lugar onde funcionou o 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exército (BIB) e o 22° Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército (BIMtz), locais de repressão e tortura no Sul Fluminense.
— A construção desses espaços de memória é uma possibilidade real de marcar territorialmente as violências do passado. Essa é uma pratica que foi adotada em diversos países do mundo, inclusive na Argentina e na Alemanha — lembra Nadine Borges, que presidiu a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro (criada para investigar violações de direitos humanos), citando lugares onde ocorreram prisões ilegais e torturas, que deveriam ter o mesmo tratamento, entre eles o Clube Ipiranga (Macaé), o Estádio Caio Martins (Niterói), o Hospital Geral do Exército (Benfica) e a Fortaleza de Santa Cruz (Niterói).
Para Nadine, há “uma evidente ausência de vontade política para que essa história seja conhecida”:
— Esse comando do esquecimento, que vem do estado para a gente ser forçado a esquecer, revela que todos os governos desde a redemocratização, em 1985, se omitiram em exigir respostas das Forças Armadas. É uma política de Estado produzir esquecimento e esvaziamento da memória.
Contra essa correnteza, familiares das 12 vítimas de Cambahyba e representantes de movimentos sociais participaram de um ato junto as suas ruínas no fim do ano passado. O projeto de tombamento já tinha sido apresentado pela deputada Marina do MST (PT) e pelo presidente da Alerj, Rodrigo Bacellar (União). Aprovado pela Alerj, foi remetido para a sanção do governador Cláudio Castro.
— A gente quer ter a lei sancionada para que seja uma ferramenta que permita abrir portas no sentido de recuperar aquelas ruínas e construir ali um espaço de memória, de verdade e de justiça. Queremos que, de fato, a sociedade tenha a oportunidade tanto de conhecer a história que aconteceu ali como de projetar coisas boas — ressalta Marina.
Dentro do complexo da Usina de Cambahyba, desativada em 1996, há sete fazendas, que somam 3.500 hectares. Em 2012, essas terras foram consideradas improdutivas pela Justiça e, em 2021, desapropriadas e cedidas ao Incra para fins de reforma agrária. Há um assentamento e um acampamento no local.
Incineração após as 18h
O parque industrial da usina, no entanto, ficou fora dessa desapropriação por se tratar de construção. Assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda promete procurar a prefeitura de Campos, para que identifique o proprietário e inicie o processo de desapropriação da área. Segundo ele, o ministério vai buscar fonte de financiamento para o pagamento da indenização e recuperar as ruínas.
— Vamos batalhar para transformar o parque industrial num centro de memória — garante ele, lembrando que a fábrica não parou de funcionar, moendo e produzindo açúcar, durante a ditadura: — Os corpos chegavam da Casa da Morte depois das 18h, quando não havia mais trabalhadores na usina, e eram colocados nos fornos.
Outro espaço clandestino usado para tortura e execução durante o regime militar, a Casa da Morte foi localizada por Inês Etienne Romeu (1942-2015), única prisioneira política a sair viva do lugar, conforme declarações prestadas ao Conselho Federal da OAB.
Localizada no alto do bairro Caxambu, a residência, que hoje pertencente à família de Renato Firmento de Noronha, foi tombada em 2023 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), em função de seu valor histórico. Este ano, um decreto da prefeitura tornou o imóvel de utilidade pública para fins de desapropriação. Foi formalizado ainda um convênio entre o município e o Ministério dos Direitos Humanos. E Nilmário afirma que, antes foi fim de 2024, a União pretende depositar R$ 1,4 milhão, para cobrir o valor da indenização fixado na avaliação da casa apresentada pela prefeitura (cerca de R$ 1,2 milhão) e para ajudar na criação do memorial, que deve ser gerido pela UFF.
— Tive a emoção de ser um dos poucos a visitar o imóvel em 2013. Vi semelhanças com a planta feita a partir das descrições de Inês Etienne. Queremos eternizar a casa como um centro de pesquisas — diz Marcus São Thiago, secretário de Governo de Petrópolis.
O processo de desapropriação corre na 4ª Vara de Vara Cível de Petrópolis. Em nota, o escritório Silva Sá e Ferreira & Miranda Neto, que defende os proprietários, cita legislações e ressalta que se “fosse cumprida a fase administrativa com empenho e justeza, (é) possível que sequer processo judicial houvesse”. Esclarece ainda que o processo encontra-se em fase de perícia judicial para avaliação do imóvel. “A observação dos critérios legais, respeitando-se a população (…) e a família que adquiriu legalmente a propriedade (…) e nela segue residindo, pode vir a tornar a desapropriação possível”, conclui.
Queda de braço
Já sobre o prédio de três andares do antigo Dops, na Rua da Relação, no Rio, os caminhos são mais nebulosos. Ele foi construído em 1910, inicialmente para abrigar a Polícia Central da República. Nadine Borges estima que, durante a ditadura militar mais de cem pessoas tenham sido torturadas em suas dependências.
— Existe uma luta de 40 anos pela transformação daquele prédio em um espaço de memória. Desde que ele deixou de funcionar como Dops, na época do Governo Leonel Brizola, na década de 1980, existe essa reivindicação — recorda o arquiteto Felipe Nin, do Coletivo RJ – Memória Verdade Justiça e Reparação (associação de ex-presos políticos, familiares de mortos e desaparecidos e militantes de direitos humanos) e sobrinho do engenheiro Raul Amaro Nin Ferreira, torturado e morto em 1971.
Tal movimento levou ao tombamento do imóvel pelo Inepac em 1987. Este ano, o coletivo apresentou representação ao Ministério Público Federal (MPF), pedindo a criação de um centro de memória da ditadura no prédio e informando sobre as condições precárias do edifício e de armazenamento do seu acervo histórico. Em março, o procurador Julio José Araujo Junior instaurou inquérito civil. E, em junho, realizou visita.
— Constatamos até documentos em sacos de lixo — conta o procurador. — O imóvel precisa ser cuidado.
Júlio criou o que chama de “frentes de diálogo”. Uma delas foi a formação de um grupo de trabalho para levantar os documentos que ainda estão no prédio, organizá-los e transferi-los para o Arquivo Público do Estado do Rio (Aperj). Outra visa a identificar o dono do imóvel. Na semana passada, um ofício da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) encaminhado ao procurador confirma que o edifício foi transferido ao antigo Estado da Guanabara, embora ainda encontre registrado em nome da União.
Uma queda de braço, porém, persiste. Enquanto o coletivo e o Ministério dos Direitos Humanos defendem a transformação do espaço em memorial, a Secretaria de Polícia Civil afirma que atualmente o prédio “está afetado à instituição”, que tem interesse nele e que “o planejamento prevê a implementação do Centro Cultural da Polícia Civil, em cumprimento à previsão contida na Lei Orgânica da instituição”.
— O ministério pode analisar ceder outro imóvel da União para a polícia construir seu museu — propõe Nilmário.
Informações de reportagem de O Globo
Fonte: https://agendadopoder.com.br/rio-tenta-transformar-em-centros-de-memoria-espacos-usados-pela-ditadura-para-torturar-e-matar/