Uma maternidade pública na zona sul da cidade do Rio de Janeiro se tornou referência no atendimento a famílias enlutadas depois da morte de um bebê na gestação, no parto ou nos primeiros dias de vida. Neste outubro, mês que, pela primeira vez, pauta o luto gestacional, neonatal e infantil no Brasil, a Maternidade Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro abriu suas portas para apresentar como faz o acolhimento de pacientes e como vem evoluindo suas práticas há pelo menos 15 anos, apesar dos desafios.
Em agosto deste ano, passou a vigorar a política de humanização do luto materno e parental, que determina um atendimento respeitoso, que ajude na recuperação das pessoas que passaram por esse trauma. A política traz uma série de determinações às maternidades públicas e privadas, incluindo a possibilidade das famílias poderem ter um último momento com a criança, bater fotos ou receberem registros como as digitais do pezinho e poderem se despedir. Também foi determinada a possibilidade de registrar o nome do bebê na certidão de óbito, e se for do interesse da família, enterrar ou cremar.
Na maternidade da UFRJ, esse momento de despedida ocorre em um local diferenciado, chamado “morge”, que, muitas vezes, não é aberto às famílias nas unidades. Ali, acontecem momentos singelos, mas cheios de afeto, contou a psicóloga Paula Zanuto.
“Nesta semana, ocorreu uma despedida que emocionou toda a equipe. Um pai e uma avó vieram se despedir de um bebê que nasceu a termo, acho que com 38 semanas, mas só viveu por um dia“, revelou a psicóloga.
“O pai e a avó vieram muito cuidadosos, muito amorosos com o corpinho do bebê, o pai colocou a roupinha, vestiu a luvinha, a meinha, muito cuidadoso, a avó falando ‘cuidado para ele não sentir frio’ , por mais que o bebê estivesse morto. A avó ainda ninou um pouquinho no ombro, enrolou na mantinha. O pai colocou a alcinha do nosso coração [de pano] em volta do bracinho do neném e na altura do coração de verdade. Foi uma cena linda, todo mundo segurou o choro, eles enfrentaram uma perda difícil juntos”, descreveu Paula para ressaltar a importância do morge.
A maternidade separou para aquele momento um local especial, com adesivos enfeitando as paredes, mantinhas cheias de bichinhos, cueiro e roupinhas de recém-nascido, para o caso de a família não ter. Outro diferencial foram os coraçõezinhos de pano, produzidos por voluntárias e que são doados às famílias, como lembrança.
“A gente oferece um par. Uma unidade fica com a mãe ou o pai e a outra embalamos junto com o bêbê”, explicou Daniela Porto Faus, chefe da Unidade de Atenção Psicossocial e psicóloga clínica da unidade.
“A gente favorece muito esse momento de despedida, seja no centro obstétrico ou na UTI. Respeitamos o tempo da família, temos muito cuidado”, acrescentou Daniela, dando exemplo de outro protocolo muito sensível: “quando o bebê na UTI está muito grave e nós sabemos que vai ter um desfecho ruim, a gente já oferece [que ele vá para] o colo para que esse bebê possa ir ao óbito ali juntinho da mãe”.
Segundo a chefe da Divisão de Gestão do Cuidado, Andrea Marinho Barbosa, responsável pela implementação da política, há a intenção de ampliar o morge para que as famílias tenham mais espaço para a prática, considerada importante para o luto.
“Nosso grande problema hoje é a estrutura física. O local do morge, onde ficam os corpos, é um pouco pequeno para receber a família toda na despedida do neném”, disse.
Além desse espaço, as mães, no leito da enfermaria, ou na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) têm o tempo que precisarem para se despedir. Na UTI, a equipe prepara uma espécie de biombo, para garantir a privacidade do momento.
“Elas ficam extremamente agradecidas, agradecem muito, se sentem acolhidas, né?”, revelou Andrea, acrescentando que o mesmo acontece com a possibilidade de colocar o nome na certidão.
“Algumas [mães] já pediam antes, mas como não tinha nada formalizado, a gente não colocava, botava natimorto, agora, a grande maioria pede para colocar o nome escolhido pelos pais”, disse.
Há pelo menos 15 anos a maternidade coloca em prática medidas para garantir mais respeito e acolhimento para famílias nessa situação. A primeira delas foi a instalação da Enfermaria da Finitude, para onde vão essas mães. A maternidade observou que a convivência daquelas enlutadas com outras mães de filhos nascidos vivos ou em aleitamento causava sofrimento psíquico para as puérperas e fez a separação.
Muitas outras unidades de saúde esbarram na superlotação e na falta de espaço físico para fazer a separação, mas, de acordo com a nova política, a medida é obrigatória. A Lei 15.139 também assegura às mulheres que tiveram perdas gestacionais a investigação sobre o motivo do óbito, bem como o acompanhamento específico em nova gestação.
Outra determinação da lei é o atendimento psicológico após a alta. A maternidade da UFRJ oferece atendimento presencial e por meio de telefone, mas reconhece limitações, como a dificuldade de as mães regressarem para a unidade, e a própria limitação das equipes, problema apontado como um gargalo da política.
“A gente ainda não tem condições de fazer esse atendimento [em casa], oferecemos somente na nossa unidade e à distância, mas queremos fazer parcerias com outras unidades, para que as pessoas não tenham que se deslocar para cá”, disse a chefe da Divisão de Gestão do Cuidado, Andrea Marinho Barbosa.
A nova lei admite parcerias das unidades de saúde com organizações do terceiro setor, que devem ser uma opção.
Musicoterapia
Outras determinações da política de humanização do luto na maternidade escola da UFRJ, e que são exemplo, incluem musicoterapia para as pacientes e equipes de saúde, que, segundo Andrea, é “para eles tiraram um pouco desse peso”, com apoio das psicólogas e assistentes sociais da própria equipe.
A lei recomenda a inclusão da discussão sobre o luto materno na formação de profissionais da área de saúde, o que torna também oportuno o compartilhamento de experiências pelos técnicos, médicos e enfermeiros.
A implementação da política, mesmo estipulada em lei, requer uma mudança de mentalidade, de acordo com a diretora da unidade, Penélope Saldanha, que lembra o processo para garantia da presença de um acompanhante no parto, este ano.
“Inicialmente, todo mundo achou que não ia ser possível, que as maternidades não iam comportar, que não ia caber no centro cirúrgico. Aqui, pedimos para que as acompanhantes priorizassem alguém do sexo feminino, para assegurar a privacidade das parturientes. Demorou mais um tempo para reconhecermos que as mulheres queriam a participação do seu companheiro no parto e, então, a nós coube nos adaptar e assegurar esse direito”.
A maternidade da UFRJ que é referência para seis unidades básicas de saúde na cidade do Rio de Janeiro, faz também pré-natal de grávidas de alto risco, e recebe, de todo o estado, grávidas com diagnóstico de doença trofoblástica gestacional, um tipo de tumor que pode evoluir para o câncer de placenta, além de atender partos de emergência.
Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2025-11/maternidade-da-ufrj-e-referencia-no-acolhimento-ao-luto-gestacional
