Recentemente, o diretor de inovação de uma grande telecom me fez uma pergunta à queima-roupa.
“Afinal de contas, Valter, a Lei do Bem se aplica mesmo às TICs?”
Eu poderia responder de maneira simples que sim, claro, pois as TICs, sigla para as companhias de tecnologia de informação e comunicação, estão entre as empresas mais inovadoras do país. E a Lei 11.196, ou Lei do Bem, como sabemos, é a principal legislação de incentivo à inovação. Tudo a ver.
Então comecei a pensar e decidi escrever uma resposta mais detalhada, que leva em conta alguns importantes aspectos do atual cenário. Em primeiro lugar, faz sentido, sim, que haja dúvidas no que diz respeito à aplicação da lei nessa nova indústria. Portanto, se você tem o mesmo questionamento que incomodou o executivo citado e esta coluna o ajudar a compreender o que se passa, é a ele que temos que agradecer.
A aplicação da Lei do Bem aos projetos de inovação nas TICs passa por um momento delicado. Um paradoxo, já que o Brasil está mais forte do que nunca em tecnologias de informação e comunicação.
Para entender, é preciso recuar até 1992, ano em que foi criado o Programa de Desenvolvimento da Tecnologia Industrial (PDTI), antecessor da atual Lei do Bem. Tinha tudo para dar certo. Baseava-se no que havia de mais eficaz em países avançados e inovadores como a França e previa o seguinte: as empresas poderiam abater do imposto de renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) parte de tudo que investissem em inovação.
A lógica é justa e fundamenta até hoje a Lei do Bem: quem toma risco para promover a competitividade e a tecnologia no país merece pagar menos impostos.
Passados 15 anos da criação do PDTI, cerca de 70 empresas utilizavam o programa anualmente – gigantes inovadoras, porém apenas da indústria tradicional, como Petrobras, Vale, Embraer. Até mesmo a construção civil, tão poderosa à época, considerava-se fora do programa. Era uma participação pequena e evidenciava a necessidade de ajustes.
O processo previa que as empresas submetessem seus projetos e aguardassem a aprovação para utilizar os incentivos. Demorava tanto que muitos projetos já haviam acabado quando a autorização finalmente saía. O fantasma da morosidade, inimigo histórico da inovação, trabalhava contra o incentivo.
Em 2007, diante desse cenário desolador, o então ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, liderou uma importante mudança: as empresas poderiam fruir dos benefícios desde o instante inicial dos projetos e prestar contas até julho do ano seguinte. Uma extraordinária vitória da inovação. A prova? O número de empresas utilizando o incentivo disparou e chegou à marca de 3.500. Ainda pouco num universo de 194 mil empresas elegíveis, porém bem mais expressivo.
Mais recentemente, há cerca de 5 anos, as TICs começaram a se juntar de modo mais representativo ao grupo de usuárias da Lei. Em 2022, segundo dados do site do MCTI, havia 58 bancos inscritos – uma evidência dessa representatividade.
Nada mais natural. O Brasil é referência mundial em tecnologias bancárias e de comunicação. Atribui-se isso também às décadas de inflação galopante, que obrigaram as instituições financeiras a investir pesado para conseguir velocidade nas transações sem abrir mão da segurança. Em sua biografia, o próprio Bill Gates cita o Bradesco, um banco brasileiro, como exemplo de empresa inovadora.
No campo das telecomunicações não é diferente. Os desafios singulares de conectar duas centenas de milhões de cidadãos com diferenças socioculturais em um território imenso, acidentado e com vilarejos de dificílimo acesso empurraram a inovação no setor para níveis avançadíssimos. Sabe-se, por exemplo, que passar um cabo pelos rios brasileiros, em especial na bacia do Amazonas, é múltiplas vezes mais desafiador do que atravessar um oceano. Basta pensar nas variações de intensidade das correntes e nas árvores e objetos arrastados da floresta, cenários singulares e característicos do nosso país-continente.
Alguns fatores de insegurança explicam a chegada tardia das TICs inovadoras à Lei do Bem, dentre eles:
- A ideia errada de que o programa se destinava apenas à indústria e ao P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) tradicionais, como mencionamos há pouco.
- Os vultosos valores investidos pelas TICs em inovação. Os bancos em especial, contratando dezenas de milhares de cientistas de dados e engenheiros todos os anos e assumindo a liderança absoluta na absorção dessa categoria de pesquisadores.
- A metamorfose da indústria, com os bancos virando telecom e as telecom absorvendo atividades dos bancos. É recente e claro o desafio de P&D que essas mudanças representam. Naturalmente, há ainda pouco repertório sobre esse tipo de projeto também no ambiente acadêmico.
Por falar em ambiente acadêmico, a chegada das TICs ao programa passou a exigir dos avaliadores um conhecimento mais específico sobre como acontece o P&D em bancos, seguradoras, empresas de tecnologia e telecomunicações. Recente pesquisa que realizamos com 63 empresas inovadoras evidenciou quais são os seis principais fatores aceleradores da inovação em TIC: inteligência artificial; ciência e tratamento de dados; sistemas de computação em nuvem; segurança da informação; redes e protocolos de comunicação; e estratégias de automação.
Tais inovações têm que ser criadas e testadas em escala gigantesca para garantir ao final a segurança, a velocidade e a capacidade de processamento necessárias. Um P&D muito diferente dos antigos testes de bancada das moléculas ou das peças industriais.
Tudo caminhava dentro do estabelecido até que durante o governo Bolsonaro, não sabemos bem o porquê, acumularam-se no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) as avaliações dos anos 2019 a 2022.
Mesmo com esse hiato, as empresas continuaram acessando o benefício nos limites e na modalidade prevista na Lei.
Em 2023, para resolver o impasse e dar vazão às avaliações, o governo atual contratou acadêmicos e realizou um esforço concentrado. Mas, ao que tudo indica, houve diferenças de interpretação sobre o que é P&D nas TICs entre os avaliadores contratados pelo MCTI e os cientistas das empresas.
Esse pode ser um dos motivos para o inédito alto nível de reprovação de projetos (em média bem acima de 50%, chegando a 90% em algumas empresas), conforme informado pelo MCTI. Um pesadelo. Podem imaginar o que isso significa para uma instituição de capital aberto que tem certeza de ser inovadora, publicou seus balanços e agora terá que reabrir a contabilidade de quatro anos atrás e prestar contas aos acionistas? Um golpe de insegurança jurídica no mais importante instrumento de incentivo à inovação do País.
Outra tese apontada para explicar as glosas é a crescente pressão da Fazenda na busca do equilíbrio fiscal. Aqui cabe destacar que o investimento do governo na Lei do Bem não é na verdade uma renúncia, como às vezes é chamado.
Estudo conduzido em 2017 pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), do MCTI, e pelo Centro Latino-americano para a Excelência e Inovação (CLAEQ), comparou a renúncia fiscal de uma amostra de empresas que utilizam a Lei do Bem com o total de impostos diretos que essas mesmas empresas recolheram sobre os produtos lançados há menos de três anos – produtos inovadores, portanto. Constatou-se que para cada real de incentivos da Lei do Bem as companhias recolheram 4 reais e 20 centavos de impostos diretos. Ou seja, não se trata de uma renúncia, mas sim de um investimento do governo para arrecadar mais.
Levantamentos recentes divulgados pelo próprio MCTI evidenciaram que para cada real investido pelo governo via Lei do Bem, em média 5 reais são aplicados diretamente pelas empresas em inovação, sem ser classificados para fins de incentivos.
Fazemos coro com a ministra Luciana Santos, do MCTI, que em seus discursos exalta a necessidade de expandir o uso dessa instrumentação. No entanto, é essencial que academia, empresas e governo encontrem juntos medidas e ações que o façam funcionar melhor. É preciso haver consenso sobre o que é P&D nas TICs e valorizar e incentivar essa indústria, justamente uma das alavancas de inovação e competitividade do país. Além, é óbvio, de assegurar a retomada do fluxo contínuo de avaliações dentro do ano.
Usar corretamente a Lei do Bem em todos os setores de negócios, e nas TICs em especial, é um componente crucial para deixarmos para trás a posição de nação pouco inovadora que hoje, justificadamente, nos causa tanto desconforto.
O post Os desafios e freios para a inovação no Brasil apareceu primeiro em Olhar Digital.
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